terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Post.it: Para além das aparências

No corredor do hospital amontoavam-se as macas com doentes que não tinham vaga num quarto. Uma senhora idosa gemia, médicos e enfermeiros quando passavam por ela mandavam-na calar.
“Que vêem quando olham para mim? Que pensam sobre o que hoje sou? Não passo certamente de uma velha que aguarda o seu final. Uma velha que geme de dores que vocês desconhecem e talvez julguem que apenas estou senil, que gemo para chamar a atenção. Mas olhem bem para mim, bastam uns minutos. Esqueçam-se destas rugas profundas que desenham o meu rosto. Já tive a pele lisa e macia, uma pele de bebé que os meus pais acariciavam enquanto me ajudavam a crescer.. Olhem para os meus lábios, murchos que já não sabem sorrir, de onde saem  contínuos gemidos, quando outrora saíram risos duma juventude irrequieta e feliz. Sim, porque já fui jovem, corri pelos campos, amei e fui amada. Vá lá, tenham paciência, olhem-me nos olhos, estes olhos tristes e sombrios de quase cegos. Estes mesmos olhos que se deslumbravam com as maravilhas do mundo, que beberam a luz dos oceanos e rompiam os horizontes do desconhecido. Segurem nas minhas mãos, estão magras, desfalecidas, imaginem como eram belas, porque o eram realmente. Tinham a delicadeza própria dum pintor que deixa na tela a harmoniosa cor da natureza. Olhem para os meus braços, conseguem saber como eram? Se soubessem como eram? Se soubessem como os meus filhos se aninhavam neles e adormeciam cheios de confiança de que esses abraços seriam eternos.
Hoje nada mais sou do que um pedaço de vida fugidia. Um ramo seco duma velha árvore. Ela cumpriu a sua missão perante a natureza e a humanidade. Gostaria de pensar que também cumpri a minha e que posso partir com dignidade e com o carinho daqueles que conseguiram ver-me para além da aparência. Que cuidassem de mim como eu cuidei de todos aqueles que passaram pela minha longa jornada existencial. Pessoas a quem dei amor, amizade ou tratei com humanidade. Peço-lhes, permitam que este final de viagem seja um lampejo de paz e felicidade.”

11 comentários:

  1. Anónimo22.2.11

    Agora que a questão dos idosos abandonados e esquecidos está na ordem do dia, este texto vem no momento certo apelar à consciência das pessoas para terem para com eles uma atitude mais humana. Obrigada

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  2. Anónimo22.2.11

    A solidão é cada vez mais uma característica dos novos tempos. Uma solidão que nos isola de tudo, roubando a vontade de socializar. Isto é uma realidade cada vez mais profunda. O teu texto é claro neste âmbito. E salienta uma grandes faceta da humanidade, o desinteresse, a indiferença pela dor dos outros. Andamos demasiado envolvidos com os nosso problemas. Os filhos trabalham, têm casa pequenas. Que fazer com os idosos, quando não há espaço nas nossas vidas para eles nas nossa vidas. É bom saber que há pessoas como tu que nos lembram destas pessoas, mostrando uma vertente esquecida. Que eles já foram pais, que já cuidaram de nós e portanto está na hora de sermos nós a cuidar deles. Bjs Sandra B.

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  3. Anónimo22.2.11

    Não consegui impedir que uma lágrima fugidia escapasse dos meus olhos. Pelo conteúdo do post, pela forma delicada como está escrito. As minhas colegas ficaram preocupadas comigo, mostrei-lhes o teu post. leram em silêncio e ficaram comovidas. Só tu para nos tocares assim. Bjs, Amália

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  4. Anónimo22.2.11

    Boa amiga, cada vez que leio o que escreve sinto uma brisa a passar. No caso desta mensagem, não a deixei passar. É tão actual, tão verdadeira e está escrita de uma maneira tão sensível que não posso deixar de a apresentar às pessoas que conheço. Isto é se mo permitir fazer. Parto do principio que sim e aguardarei qualquer comentário em contrário. Se não houver amanhã oferecerei aos meus amigos esta linda mas dolorosa mensagem. Um grande abraço e o meu muito obrigado. Um abraço, Antero

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  5. Anónimo22.2.11

    Menina que post.it! tão bonito, tão humano. Vieram-me as lágrimas aos olhos. Vi aquela idosa, consegui imaginá-la jovem e feliz e depois vista apenas como um trapo velho. Obrigada por teres esta visão, este sentimento e nos transmitires. Este post.it para além de muitos outros, mas este em particular devias divulga-lo nas redes sociais.Bjs Leonor

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  6. Anónimo22.2.11

    Gostei muito do teu texto, é um assunto que tem sido falado ultimamente. Deu-me uma tristeza imensa aquele abandono e descaso para com a dor de quem sofre. Bjs Rui

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  7. Anónimo22.2.11

    Hoje chorei, esta mensagem tocou-me tão fundo. Lembrei-me de familiares meus que passaram por situações idênticas. Chorei por eles, chorei por todos os anónimos que estão abandonados nos corredores dos hospitais. Abandonados na dor e na solidão.Bjs A.

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  8. Anónimo22.2.11

    Esta mensagem tocou-me profundamente. Quis apagar a imagem que me ficou quando no lugar daquela senhora me via a mim. Desejei com muita força que na minha vida encontre muitas pessoas como você. Que vejam para além da aparência. Está muito bem escrita mas é muito triste não por ela mas por ser um retrato da sociedade em que vivemos. Como desejava que tudo isso mudasse… Obrigada, Adelaide

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  9. Anónimo22.2.11

    Este post-it deixa-nos sem palavras e com as emoções ao rubro.
    Transpus-me para aquela maca...
    Pensei nas nossas mães…
    Imaginei nela uma das minhas avós (que perdi há tanto tempo e tão cedo)…
    Relembrei-me os doentes nos corredores do Santa Maria e que muitas vezes “olhamos”, indiferentes, pensando apenas nos nossos problemas…
    Doeu, muito…
    Obrigada por mais este alerta de Olhar(es)… é LINDO. Bjs

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  10. Anónimo22.2.11

    Eis uma questão que mexe muito comigo. A velhice, a solidão, o abandono, a indiferença. Quando vi nas notícias os caso da idosa que esteve 9 anos morta num apartamento. Fiquei em estado de choque. Esta é sociedade de isolamentos que nós temos e com a qual temos um dia, mais cedo ou mais tarde de nos confrontar. Antigamente a velhice era sinónimo de sabedoria, admiração e respeito, hoje é apenas um estorvo. A forma como abordas o assunto é diferente, sensível e chamativa. Todos deviam ver para além da aparência. Para verem a beleza que existe no seu interior porque esta não tem idade. Obrigada

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  11. Anónimo22.2.11

    Um texto muito bonito e triste pela realidade que evidencia. Numa sociedade envelhecida, o cuidado dos idosos deveria ter muito mais qualidade, a começar pela atenção das próprias famílias e a acabar nos serviços públicos que, infelizmente, têm pouca resposta a situações de doença final e prolongada. Parabéns pelo assunto. Bjs. Isba

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