terça-feira, 31 de maio de 2016

Post.it: Aquele mês, aquele dia...

Cada pessoa tem o seu mês, o seu dia de “pavor”, de uma, cada vez mais velha, dor. Que se distancia, mas fica cravada algures no corpo como se nos fosse uma tatuagem invisível, pelo menos aos olhos dos outros. E é essa invisibilidade aparente que nos faz sobreviver a cada caos que nos atinge, que nos marca, restando uma sensação de sobrevivência, de quase, mas apenas quase felicidade, por a superarmos.
Mas hoje, quando olham para nós não percebem, aquilo que já fomos, o que já sentimos, as mágoas, o rio de águas que secamos no peito.
Levamos o ano inteiro a esquecer, há momentos que chegamos a acreditar que o conseguimos, que já passou e que nada, absolutamente nada dessa memória restou, apenas, quiçá, a data. Como um fantasma que de vez em quando ainda nos vem assombrar o sono, os sonhos.
No entanto, quando a proximidade se começa a fazer sentir, a angústia acentua-se, uma recordação eleva-se e entristece-nos, talvez menos, do que no ano passado, pensamos, porque na verdade, assim queremos supor. Mas será que é o que acontece em nós, no turbilhão das nossas emoções?
Afastamos os ventos da desgraça, queremos, precisamos, de sorrir. De contemplar cada dia e nele encontrar o brilho solar do nosso olhar. Afinal, neste ano aquele mês, aquele dia, já passou, no próximo estaremos melhor e a data, a terrível e temível marca da vida ter-se-á esbatido na nossa lembrança substituída cada vez mais pela crescente esperança de que realmente assim seja. 
Para outros, alguns,  ainda se aproxima esse mês, esse dia, que lembra o final de algo, ou o princípio de tudo: uma morte, uma doença, um acidente, um divórcio, uma catástrofe, uma tragédia, uma perda irrecuperável, um desencontro, outras, tantas e dolorosas vivências, histórias que ficam para sempre dentro da nossa história. 
Até que um dia, acredito que esse dia chegue, possamos aproximar-nos desse mês sem medo, sem revolta. Que o dia venha e passe com a mesma leveza de todos os outros dias. 
E quem sabe, em algumas situações, tenhamos, até vontade de o celebrar porque foi o percursor da mudança, significou apenas o fim do que tinha de acabar e o começo de algo que nos fortaleceu e conduziu a um futuro mais radiante.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Sem lar

Por caminhos incertos,
Com letras errantes.
Escrevo longos desertos,
De areais deslizantes.

Já que os passos insistem,
Em descobrir a direção.
Dos sonhos que persistem,
Em afastar a solidão.

Destas constantes ondas,
Destes mares de fantasia.
Que se tornam delongas,

Deste eterno navegar.
Na velha companhia,
Deste coração sem lar.


terça-feira, 24 de maio de 2016

Post.it: Quem não me deu amor

O amor pode estar tão perto e afinal, por vezes tão longe, uma distância que não é mensurável em metros, em quilómetros, mas em gestos, os que recebemos, os que damos, os que nos negam e que nos deixam repletos de ausências.
Medem-se também pelas palavras e por vezes, demasiadas, pelos silêncios.
Contudo, são tudo o que é nosso, por herança familiar, por amizade. São as nossas asas, quando nos deixam voar. São as nossas âncoras, quando nos transmitem segurança. São a possibilidade de crescermos,  de aprendermos, de sermos quem realmente somos.
Uma herança que não se recebe só quando alguém perece, é uma herança de genes,  mas também da partilha dos tesouros do seu coração.
 É certo que nem sempre nos trazem alegria, por vezes há mágoas à mistura, faz tudo parte dessa cada passagem de testemunho, das escolhas, de cada viagem, do enraizamento, de estar aqui com o olhar lá mas ficar. Um ficar que nem sempre sabemos a razão dessa força anímica que nos impele a agir, um dever moral, uma consciência,  que nos entra mesmo pela porta fechada e nós, cumprimos, respeitamos. 
Devia ser por amor, por vontade, por querer, devia ser natural, espontâneo, afinal, somos o fruto dessa árvore. Mas a verdade é que “quem não me deu amor, não me deu nada” (Ruy Cinatti), e esse nada é por vezes a nossa herança, aquela com que temos de viver. 
Se nos sobrar coragem e não nos faltar o carácter, vamos engrandecer, fazer do pó montanhas, transformar a indiferença em diferença e a distância repleta de gestos, ou palavras para que cresçam em tesouros passiveis de ser partilhados. Até que um dia seja o amor a herança que todos nós recebemos como a mais preciosa ao longo da vida.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Post.it: Os livros

Quem lê o que escrevemos, lê mais do que letras à solta, lê mais do que linhas alinhadas, mais do que palavras, ideias, mensagens, emoções.
Na verdade quem lê não lê, embora o acredite, não o que está escrito mas quem o escreveu. Porque em cada acto de leitura somos nós que somos lidos por vocês leitores que nos “escrevem” com as vossas expectativas, com as vossas angústias. E depois, quantas vezes, muitas, deitam-nos fora, apagam-nos, riscam-nos, atiram-nos à parede, deixam-nos abandonados numa estante cada vez mais lá para o fundo, para o lugar do esquecimento.
 E porquê? Porque não leram em nós aquele abraço, aquele aconchego, a palavra amiga, o sonho que queriam concretizar no sonho.
Não encontraram em página alguma a compreensão, o apoio, a ternura que buscavam. Leram cada letra, cada silaba, cada frase ávidos de esperança, de que nós tenhamos escrito que estávamos lá para vós.
Depois de tantas horas, de tantas noites de insónia, de meses perdidos, desistem da leitura, com amargura, dor e no sarcasmo onde escondem a decepção,  esboçam um sorriso e pronunciam triunfantes a sentença “este livro não presta!” Condenado ao lixo por anos infinitos de segregação na estante dos fundos.
Mas, que culpa tem quem escreve da descoberta falhada do seu leitor. Dessa aventura de encontro consigo que não aconteceu. Da mal sucedida decifração do seu eu na evocação da sua história, no mergulho profundo e afogante na sua desconsolada memória.
Não nos culpem da vossa desventura. Olhem para nós, olhem por nós, saibam que “Os livros também têm memória e não esquecem!”. Acreditem nas suas palavras, sintam-nas latejantes de emoção,  “quando lidos profundamente eles estão incrivelmente vivos”.
Todos os livros são infinitos. Começam no texto e estendem-se pelo coração.


sexta-feira, 13 de maio de 2016

Post.it: Saudade

“Saudade é um sentimento que quando não cabe no peito escorre pelos olhos”
Um dia li esta frase, e guardei-a algures na memória, algures no peito. Um dia encontrei-a no olhar de alguém e em vez de chorar com ela, ri-me, senti-me feliz por ela. 
Afinal chorava por toda felicidade que já conhecera e não por estar triste, nem por mágoa ou revolta. De repente, não partilhámos lágrimas mas a leveza do riso. 
Contou-me a sua história e eu guardei-a comigo, como quem guarda um amigo. Revelou-me cada saudade que lhe inundara o peito e transbordara pelos olhos, e eu ouvi em  quase invejoso silêncio. 
O sol já se tinha deitado, a lua já espreitava, céu já se cobria com um manto sonolento, a primeira estrela cintilava qual menina traquina ansiosa por ir brincar e, eu escutava. Escutava cada gota da água que lhe caia dos olhos em notas de melodiosa sinfonia de sentimentos, aqui e ali mais esvoaçantes, aqui e ali mais pesarosos. 
O que me prendeu não foi a sua história mas a forma como foi contada, a vontade de ser mundo e a humildade de se sentir apenas um grão de mostarda. Nesse aparentemente nada que no entanto torna o tudo mais completo. 
Enquanto falava sorria, sorria sempre como se cada momento tivesse sido belo, quase sublime. Não me contive, impetuosa, descrente, perguntei-lhe… “- Mas foi sempre feliz, de tudo guarda saudade?”.
 “– Sim sempre fui feliz e a saudade é a maior prova de que o passado valeu a pena”.


segunda-feira, 9 de maio de 2016

Post.it: imPossível

Enquanto o difícil não for impossível nunca hei-de desistir, de tentar, mesmo sem conseguir. Quem sabe, um dia, mesmo que nunca. Há quem diga que “mais do que conseguir o importante é tentar”.
É isso que nos define, que nos revela o carácter. Esse carácter que “custa caro, mas também há quem diga “pago o preço”. Por algo cada vez mais “raro” e porque de bom carácter “padeço”.
Doença que quero incurável, que chega a ser-me dolorosa e até “dispendiosa”, porque perco, não dinheiro, mas “amigos”. Esses que não “padecendo” da mesma maleita. Vivem de vida aparentemente escorreita, mais torta que direita. Felizes, há sua maneira. Contentes ou ocultando o seu descontentamento. Desistiram de ultrapassar o difícil sentindo-o como impossível. Vestem a camisola de um clube “vencedor” que vence tudo, talvez até “vença a dor” desse conflito moral, desse grito de consciência, silenciado com a prática dos anos.
Mas que fazer, se o fingimento não me preenche, se a felicidade aparente não me satisfaz? Continuar na senda do que sou, no agreste caminho por onde vou e se for só, que assim seja, vou apreciar a minha companhia. É tudo uma questão de escolha, de se querer, o difícil, talvez, nunca se torne fácil, mas o sabor de o cumprir torna-nos mais leves, mais completos, em harmonia connosco.
Para quê, se tudo passa, sim é verdade. Mas fica, fica esse instante, esse dia, o tempo em que estamos aqui. O que fica, somos nós, nas pegadas, nos traços de um sorriso que causamos, nas sombras e luminosidades do caminho, nos gestos, nas palavras, no que demos, no que de nós demos. Nesse instante, o impossível concretiza-se e o difícil, se o era,  deixou de o ser…

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Poetando

Olho a pedra e não vejo pedra,
Olho a queda e não vejo mágoa.
Olho a morte e não vejo guerra,
Olho o mar e não vejo a água.

Porque tenho nos olhos amor,
E os sentidos esvoaçantes.
Da primavera só vejo a flor,
E do futuro sonhos navegantes.

São os olhos do coração,
A sentir para além do ver.
E os pés sem tocar o chão,
E o sorriso a falar sem o dizer.

A vida mesmo quando ferida,
Tem uma felicidade só sua.
Que deixa a dor esquecida,
E os pensamentos na lua.


terça-feira, 3 de maio de 2016

Post.it: Navegando

Somos um mar ondulante de emoções. Temos rios a correr-nos nas veias cansadas de nos navegar.  Contemos um lago onde os pensamentos vêm por vezes descansar. Mas de vez em quando há um cais que nos abriga das eternas viagens em ondas desconhecidas de sol e de paixão.
Afinal, vivemos em busca de nós, em busca de um chão, terra firme onde repousar a vida tão rapidamente vivida. Em itinerários de velozes alterações, metamorfoses do ser, do crescer, do amadurecer. E isso acontece-nos mesmo quando julgamos que estamos parados em algum porto de abrigo, tempo breve de tranquilidade, porque a qualquer inesperado momento somos atirados para o meio do oceano, onde uma tempestade nos impele a prosseguir por entre vagas que nos levam aos de cumes e aos baixios, afogando-nos e erguendo-nos como se fossemos uma jangada de pedra em súbito desespero por um farol que nos ilumine a escuridão de cada dia.
Sonhamos com macias dunas onde pousar a cabeça, ansiamos por uma brisa que nos leve a magoada memória desse mar, desse sal doendo no corpo.
 Enquanto o horizonte se estende para lá do nosso querer, dizendo que é longo o caminho, num convite, num desafio, enquanto cada braço estendido se depara com o limite de uma margem, que não sei se nos abraça, não sei se nos oprime.
Por vezes visualizamos pontes, quase parece fácil atravessa-las quando acreditamos que do outro lado há uma chegada festejada, mas é difícil encontrar o passo quando nos habituámos a mergulhar sem vir à superfície. 
 Quando nos esquecemos de respirar e morre-nos nos alvéolos pulmonares o oxigénio da última esperança. Quando na crista da onda, ela não é celebrante mas desenraizante da fé, do alento desse lugar para onde queremos ir. Talvez, porque esse lugar na realidade nos seja apenas uma ilha de fantasia, e entre nós e os oceanos somente exista o reflexo silencioso das noturnas estrelas.