sexta-feira, 26 de abril de 2013

Post.it: A outra margem da vida


Um olhar da outra margem, olha para mim e não me vê e nessa ausência que significo, devora-me a sombra com o seu sol.
A minha imagem silenciosa fica suspensa na linha do horizonte, aqui onde o deserto me habita, aí onde o nada me envolve. Quando apenas queria ser a sua  sombra, a sua protecção da luminosidade escaldante, tornei-me na mais vaga metáfora, um sonho cravado na dureza do mundo.
Este nada, este ninguém, excepto vida vivida deste lado da margem. Pelo meio, um rio do tamanho do mar. Claro que existem pontes, mas quem as atravessa? Eu, para me perder nessa inexistência de caminho? Para uma margem que não se reconhece na minha? Uma lágrima navega-me no rosto, cai-me no peito que se tornou rio sem margem, sem ponte, sem céu, sem sol e sem luar.
Porque brilhas astro rei incitando-me a sonhar, se o despertar nada traz de novo? O meu cais contínua vazio, desses  navios que ao passar apenas me oferecem um aceno.
Sem âncora, sem remos, sem leme, permaneço à deriva do meu próprio ser. E a tua margem tão perto, tão perto que me fica cada vez mais longe.
Entre o querer e o ser há este rio, este quase mar e uma margem que olha para mim sem nunca me chamar.
O que sou sem a outra margem, o que sou sem essa parte de mim, sem esse reino de fantasia que me fez sonhar acordada, uma mulher, uma ilha, uma luz, uma estrada... 
A descoberta serena de que também há sol nesta margem, basta pousar, deixar o nevoeiro passar e ver além do olhar...


quarta-feira, 24 de abril de 2013

Post.it: Os sonhos que já sonhámos


Outro dia no autocarro sem ter mais nada de importante para fazer, afinal, a paisagem vista da janela é sempre a mesma, as lojas são sempre as mesmas, bem não será bem assim, em cada mês há sempre alguma a fechar. Mas dizia eu que apesar de tudo isso não tinha nada de importante para fazer, podem sugerir-me que leia, mas a verdade é que fico completamente enjoada, assim sendo lá ia dando uma espreitadela pelo canto do olho para os meus companheiros de viagem, à minha frente estavam duas crianças, não teriam mais de 10 anos numa animada conversa riam e acusavam as características de cada um,  “ora, dizes tu que queres ser gangster e ainda bebes leite antes de adormecer!?” O outro corou sem encontrar resposta deu-lhe um valente empurrão, mostrando “que era o leite que lhe dava essa força”, ou melhor que à falta de superior argumento partia-se para a “ignorância”. Como os tempos mudam…
Já dizia Luís Vaz de Camões, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Quando era criança, os meus primos queriam todos ser cowboys, claro que eu preferia ser uma índia fugidia. Entre gritos e gargalhadas lá íamos preenchendo os nossos ideais de infância. Nos finais do século XIX, Teresa Cepeda e o seu irmão Rodrigo, crianças ainda de tenra idade (7 e 6 anos respectivamente) fugiam de casa perseguindo uma ideia de felicidade, queriam, porque queriam, tornar-se mártires.
Que loucura, diríamos hoje, que coragem, que beleza de espirito consideram certamente naquela altura.
Os meus primos, nunca chegaram a verdadeiros cowboys, nem eu a índia. Aqueles miúdos do autocarro, espero que não se tornem gangsters e continuem a beber leite ao deitar. Quanto à Teresa Cepeda, não se tornou mártir, foi para carmelita e  hoje é recordada como Santa Teresa de Ávila.
Estranhos são os desígnios da vida, dos sonhos que abandonamos pelo caminho ou que levamos pela vida fora.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Post.it: Não penso nisso


“Não sei se gosto ou se não gosto, vamos andando. Acho que gosto afinal cá estou de plantão todos os dias à porta serviço, empresto-lhe um beijo, dispenso-lhe vagamente o olhar, está ficar velha, flácida, não lhe conhecia aquela ruga, nem nenhuma das outras. Na verdade, nem dou por isso. Aprecio a sua companhia, sobretudo se não me atazanar a paciência com queixumes. Que diga-se em boa verdade, são cada vez em maior número. Eu sou, homem, e os homens não se queixam, nem pensam nisso. Apreciam o momento, não o detalhe. Mas gosto dela, afinal lembro-me, ou melhor lembra-me a minha secretária do seu dia de anos. Trago-lhe sempre um ramo de flores, não consigo encomendar mais nada, não consigo perceber o gosto das mulheres, roupas, perfumes, cremes, jóias de pechisbeque. Tenho atenção às datas que ela considera essenciais, o Natal… sinceramente nunca me lembro do dia em que nos conhecemos, nem do dia em que casámos, desculpo-me perante a sua tristeza, garantindo-lhe que aprecio mais o presente que o passado, será que ela acredita, não penso nisso. Só quero estar aqui, nem sequer sou homem de andar armado em garanhão, já ultrapassei essa fase. Só quero ter um lar, um sorriso, uma conversa amena, à noite amar, adormecer e acordar. Paixão, felicidade? Não sei, não penso nisso…”
“Por vezes pergunto-me de que são feitas as relações, os casamentos, aqueles que se perdem na rotina dos dias, dos anos. Pergunto-me se ele ainda gosta de mim e se eu ainda gosto dele. Habituei-me à sua presença, à sua atenção de me vir buscar ao emprego, de me beijar, de me deitar um olhar de admiração, ou desejo? Não sei bem, já não distingo, habituei-me à sua solidez, à sua tranquilidade. À certeza da sua presença. Deve gostar de mim, afinal, lembra-se sempre do meu aniversário e de outras datas, traz-me sempre um lindo ramo de flores e diz que são para a mais bela flor. E eu acredito, preciso de acreditar nesta comunhão de vida, nesta construção de um lar, neste caminho que jurámos seguir juntos pela existência fora. É verdade que por vezes ele se esquece dos detalhes, que não valoriza certos momentos que eu recordo como se fosse hoje, o dia em que nos conhecemos, o dia em que me pediu em casamento e eu de voz embargada só consegui chorar de felicidade. Onde está essa felicidade que ele já esqueceu? Rapidamente abraça-me e responde num tom que me começa a soar cada vez mais vazio, que não se lembra porque só o presente e o futuro lhe importa.
No fundo, acho que ele nem pensa nisso…”

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Post.it: Um pretérito quase perfeito


Às vezes é preciso falar de nós, conjugando o pretérito perfeito. Lembrar as origens, a razão de sermos aquilo que somos, “porque só isso nos deixaram ser”, diz uma voz jovem num corpo de idade indefinida, num rosto queimado pelo sol, sombreado de noites mal dormidas, pelo seu Zé que anda no mar e o filho já lhe segue os passos, enquanto a miúda já lhe calça os chinelos de peixeira. “A escola? Eles lá querem saber da escola, e depois filhos de pescador e a peixeira nunca passam disso mesmo. Bem tentei convence-los a contrariar a sina mas não me deram ouvidos”.
Às vezes é preciso buscarmos nos outros a senda do que somos, por mais que queiramos não podemos alterar os nossos genes, fugir do destino que os nossos  bisavós, os nossos avós e os nossos pais nos escreveram no ADN da existência. Claro que desejava reescrever a minha história, afastar-me definitivamente deste caminho e deixar para os vindouros uma outra narrativa de vida, na liberdade de a escreverem sem influências geracionais.
Às vezes é preciso aceitar, deixar de nos rebelarmos, aprendermos a conviver com os traços, a semelhança da voz, apesar da dissonância de ideias, acabamos sempre por regressar às origens, porque “uma alma sem raízes é um papagaio papel à deriva no  vento” em busca de uma inexistente direcção.
Às vezes é preciso reconhecer e valorizar essa herança. “Tem os olhos da mãe, o nariz do pai, mas o feitiozinho, não se pode negar,  é o da avó”. “E essa costela algarvia que não a deixa calada um só instante? Um cansaço…”
 “Mas por outro lado contrapõe-se a costela alentejana numa indolência calorosa e uma paciência que ronda o infinito das planícies de trigo louro”. “Não te esqueças da influência marcante das raias fronteiriças, esse jeito espanhol que apanhou de ambos os lados da família, olha, tornou-a desenrascada”.
Sussurram assim as minhas “fadas madrinhas” agitando-me um futuro na ponta da “varinha de condão”
E assim fadada ao meu destino, num qb de quietude e inquietude, vejo os Zés partirem nas ondas da maré, as esposas peixeiras à espera do regresso no cais de cada madrugada e os filhos que trazem em cada molécula, marítimos vendavais  mas também maternais portos de abrigo.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Post.it: Na estação de comboios


Sempre que ia ao Porto e ia quinzenalmente, lá estava ele na estação de comboios  curiosamente não tinha o olhar perdido que a idade avançada lhe poderia dar. Espreitava a cada chegada, deslocava os olhos por entre a  multidão até não restar mais ninguém dessa viagem. Dir-se-ia que esperava alguém. Alguém que tardava, alguém que tinha perdido o comboio. Comecei a ficar curiosa, fui-me aproximando, sentei-me a seu lado. “Está atrasado? Os comboios são assim, nem sempre chegam na hora prevista”. Olhou-me, sorriu-me num gesto de assentimento e voltou a perscrutar os rostos anónimos em busca de um que lhe fosse familiar. E mais uma vez a estação ficou vazia, e mais uma vez suspirou. “Há quanto tempo está à espera?”. “10 anos, 2 meses, 10 dias e algumas poucas horas”. “Algumas poucas horas, que se tornaram muitas, demasiadas, talvez?”. “Nunca são horas demais para quem acredita que a chegada vai acontecer”. “E o que espera, um amor?” O meu pensamento já lhe desenhava uma novela repleta de dramático romantismo. “Menina, eu lá tenho idade para esperar o amor! Espero a minha filha, disse que ia ao Porto e que voltava, para a esperar e eu espero, já não tenho ninguém, a mãe dela partiu para o céu, se não fosse pela minha filha tinha partido com ela, mas tinha que cuidar da miúda que apenas tinha 8 anos. Criei-a, dei-lhe tudo o que pude. Levei-a à escola, cuidei das suas febres, chorei quando tive de a deixar no hospital para ser operada ao apendicite e mimei-a com tudo quando lá a fui buscar. Pintei-lhe o quarto de cor-de-rosa, enchi-o de bonecas compradas na feira, o dinheiro não chegava para barbies, mas ela nem deu pela diferença, era humilde, grata; era alegre, inteligente, dizia que um dia seria médica para cuidar de mim na velhice, era feliz… Até conhecer o Jorge que mora no Porto. Ele fazia-lhe cenas de ciúmes, afastava-a de mim, roubou-lhe o sorriso, provocou-lhe lágrimas, tornou-a infeliz. Bem que tentei abrir-lhe os olhos, mas dizia-se apaixonada. O amor não é sofrimento, não é humilhação, o amor não nos faz mal e o que tu sentes pelo Jorge magoa-te, magoa-me. Afasta-te dele, ele não te merece. Ela baixava os olhos e dizia que sim com a cabeça. Até que um dia viemos até à estação, apanhou o comboio para o Porto, foi falar com o Jorge, acabar tudo e regressar. E eu espero-a aqui, ela vai regressar, vai trazer no rosto aquele sorriso com que a vi crescer.
De repente interrompeu o discurso, levantou-se num ápice. “ Desculpe, agora não posso conversar mais consigo, chegou um comboio.”
E lá foi até ao apeadeiro para receber quem nunca chega. Levando no rosto um sorriso de esperança que, imagino, seja igual ao que a filha herdou, se é que ela, esteja onde estiver ainda o tem, pelo menos na lembrança…



quarta-feira, 17 de abril de 2013

Quando o dia se me entardece


Quando o dia se me entardece,
 no coração feito de espera.
O encontro que não acontece,
Adormece-me no peito sem era.

Carente desses sonhos,
Doídos de tão sonhados.
Que já nem os tristes olhos,
Os contam acordados.

E tudo o que queria,
Era o amanhecer da alegria,
Em que o encontro acontece.

E tudo o que desejava,
Era o sol que te iluminava,
Quando o  teu olhar resplandece.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Post.it: Um livro que merecia nascer


Um livro sem heróis, sem romance, sem indicação de caminho, sem verdades de la palice, sem mentiras que nos façam acreditar no “Pai Natal”. Um livro sem sonhos, sem fantasias, sem modas, sem indicação de faixa etária, sem género. 
Um livro sem reclamações, sem gritos de guerra, sem lágrimas, sem sarcasmos, hipocrisias, de anedotas, de espíritos vazios, de esperanças vãs.
E no entanto que seja um livro de ecos, de luz na escuridão, de caminho percorrido, de caminho por percorrer, um livro com voz, um livro que se leia em nós: No rosto, no olhar, nas mãos que dão e recebem, no coração, na alma, no sorriso franco.
Um livro começado, um livro nunca acabado, um livro que folheamos com sopros de brisa, no calor do sol, na sombra da lua. Que se lê no cume da montanha, para o rescrever nas nuvens. 
Que se entoa na margens dos rios para que a sua história siga na corrente das águas sem magoar a memória.
Não o procures nas livrarias, nas bibliotecas, nos alfarrabistas. Não o procures nas estantes dos teus amigos, não procures na tua mesa-de-cabeceira, mas continua a procurar, estás cada vez mais perto dele. Escreve-o, merece nascer, não será um best-seller, mas certamente, your best.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Post.it: Alguém para me sentir


Já me viste chorar, já me viste rir. Aqui, onde me dispo perante ti, nas histórias vividas, nas histórias sentidas. Nas histórias que me passam diante do olhar por este rio da vida que segue, por vezes alheio à nossa vontade.
É aqui que te olho de frente  sem medo de cair no abismo das emoções. É este olhar que te rouba do silêncio e te restitui a voz, sem se esconder no receio do desconhecido.
Claro que emolduro o retrato, claro que ilumino o breu de cada dor, claro que pinto aqui e ali um arco-íris de positividade, claro que construo um sorriso em lábios que já não sabem sorrir. Mas a verdade é que estou aqui, nas entrelinhas, nas vírgulas, nos pontos finais e sobretudo nas exclamações, porque nunca deixo de me surpreender com as vidas, tal como são elas vividas.
Mesmo quando me apontas laivos de fantasia, peço-te, não analises tão friamente o que sinto, o que deixo de mim nestas linhas, afinal, já basta cada manhã que não trouxe o sol, já basta esta primavera com ares de inverno, já basta cada sonho que sabemos finda com o despertar, já basta a noite sem dormir, já basta a felicidade que nos parece fugir. 
Precisamos de esperança, precisamos de acreditar, precisamos de ver a paisagem dos dias com mais cor, precisamos que o coração bata com mais amor.
Já me viste tal como sou, tal como me dou e mesmo assim dizes que nada sabes sobre mim...
Na verdade, sou cada história, onde estou. Porque tal como elas apenas desejo encontrar, “alguém que me saiba definir”, “alguém que me saiba sentir”.


sexta-feira, 12 de abril de 2013

Post.it: Diário das minhas memórias


Deixa-me falar-te de tudo aquilo que nunca lhe direi olhando nos olhos. Chama-lhe timidez, chama-lhe orgulho magoado, chama-lhe receio do fracasso. Chama-lhe o que quiseres, porque não irei ouvir. Escondo-me em ti, meu diário, confessor dos meus dias, omissor das minhas noites. Contador das minhas histórias, das minhas guerras, das minhas, poucas vitórias. Guarda nas tuas páginas os meus segredos, porque hoje, vou escrever tudo aquilo que gostaria de lhe dizer.
Hoje, vou abrir-te o coração, vou oferecer-te os meus mais ternos ensejos e afogá-los nos mais loucos beijos. Tenho tanto para te dizer, tantos sonhos para repartir contigo, tantas fantasias para viver contigo. Tantos planos, tantos momentos que crio só para nós. Guardo no olhar todos os pôr-do-sol que poderíamos partilhar. Todas as primaveras que veríamos florir. Todos os verões mergulhados na frescura do  mar. Todos os outonos caminhando numa passadeira de folhas caídas. Todos os invernos à lareira bebendo um cacau entre gargalhadas quentes. Sim, porque nos idealizo felizes, sem pensar na chuva que cai lá fora, que desce pelas ruas. Não nos importa o lamento uivante do vento apelando para entrar nas nossas vidas e a revolucionar.
Deixa-me confessar-te que perco os sentidos quando imagino o calor das tuas mãos aconchegando as minhas, não, não te rias por elas serem pequeninas, sabem fazer tantas coisas, não sabes quantas… Mas não te guardo segredos, as minhas mãos podiam oferecer-te um arco-íris para fazeres dele um colar; podiam trazer-te uma nuvem para descansares o teu cansaço do final do dia; podiam recolher algumas estrelas do céu para iluminar o teu leito quando fosses dormir.
As minhas mãos são pequeninas, é verdade que são mas não adivinhas como elas escrevem numa velocidade vertiginosa todas as palavras que o coração lhes dita com ânsia para te oferecer.
Deixa-me dizer-te tudo o que sinto. Antes que a razão me tolde os sentimentos e venha como uma mãe sensata roubar-me a ternura do momento. O único momento que me pertence, o único ideal que detenho. A herança que te deixo da minha parca existência. Esta poesia meio louca.
Estes laivos de dor/ A que poderia chamar amor/ Sinceros e desordenados/ Tantas vezes, desapontados/ Desesperados de esperança/ Que deixo aqui, nesta lembrança.




quinta-feira, 11 de abril de 2013

Post.it: Sombra obliqua


Há quanto tempo que sou apenas eu e a minha sombra, vejo no horizonte outras sombras, tento encontrar a consonância dos contornos, o encaixe de essências, o encrave de células ou apenas a descoberta de sonhos comuns. Procuro uma sombra paralela, que caminhe comigo, que se eternize pelo luar da noite, pelo nascer dos dias. Até ao momento em que o sol no seu jogo de luzes, me rouba a sombra que supus, completar a minha.
E o céu nocturno, companheiro, ouvinte dos meus silêncios, vai desenhando outras sombras, para me iluminar o coração. Rejeito todas, prefiro por a companhia, apenas  a minha sombra. Mas eis que o peito já me trai, e o olhar já se estende, o sorriso já se me aflora, por essa sombra que se aproxima, replecta de suaves promessas, desenlaço os braços, estendo-os em abraços, com um convite para que entre na enseada do meu ser. Um apelo para que caminhemos lado a lado, um desejo que unamos as sombras e redesenhemos a felicidade da vida. Mas ela não se detém, cruza a sua sombra com a minha e, continua o seu percurso como se lhe fosse indiferente. Apenas uma sombra vazia de conteúdo, sem possuir uma vida anexada.
 Volto ao meu passeio no luar da noite, arrasto a minha sombra pelas ruas vazias. Enquanto no peito transporto, a longa nostalgia derramada. Mais uma vez não foi aquela, a sombra que se tornou una com a minha. Nem foi a sombra que me acompanhou num destino paralelo ao meu.
Restou a saudade daquela sombra mais sonhada do que vivida, aquela sombra oblíqua.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Post.it: Não és um erro


“Se encontrares erros aprende com eles. Não tentes mudar, nem impor a tua gramática, a tua lógica de armários bem arrumados, de gavetas imaculadamente alinhadas. Somos iguais, mas tão diferentes. Eu danço na chuva enquanto tu te escondes dela. Eu procuro a sombra, tu queres brilhar.
Se encontrares erros não os corrijas, são a minha maneira desordenada de pensar, de sentir, mas bem organizada onde é necessário, aqui, dentro do peito.
Talvez não diga o que queres ouvir, talvez não escreva o que queres ler, mas ofereço-te tudo isso em cada abraço que permanece aberto à espera para te aconchegar.
Se encontrares erros, não os apontes, não sou perfeita, sou apenas aquela pessoa que se senta ao teu lado, que te ampara nos momentos em que precisas, que te escuta o tempo que tu quiseres, que sabe a hora de chegar, que sabe a hora de partir. Que quando está, está inteira, que quando sente, é verdadeira.
Sou aquela que não te conhece erros, apenas aquilo que és. Mesmo que dês pontapés na gramática, que violes todos os acordos ortográficos, que troques as letras, que atropeles as palavras, vou sempre entender-te nas entrelinhas do que escreveres, vou escutar-te no meio dos teus silêncios, porque uma convicção se ergue firme em cada amanhecer como uma bandeira que se desenrola no estandarte do horizonte, nunca serás o maior erro da minha vida, mas antes a minha, mais plena certeza.”
Escreveu tudo isto num talão do multibanco, escreveu-o com pressa, entre o nevoeiro do olhar que afastava com impaciência, e os cabelos que lhe toldavam a visão. Era um desabafo silencioso, um grito sufocado que se libertava na velocidade da escrita. De repente levantou-se, amarrotou o papel com raiva, com mágoa e atirou-o para o chão, saiu do autocarro num ápice de fuga. Apanhei o papel, pensei que talvez o tivesse deixado simplesmente cair, quis chama-la, mas já tinha desaparecido na multidão.
Desembrulhei-o com receio de estar a cometer uma inconfidência, mas quem sabe contivesse uma pista para o devolver. Li-o, entendi-o, percebi que  tinha tido coragem para o escrever mais faltara-lhe essa mesma coragem para o dar a ler, numa contestação, numa revelação. Voltei a amarrota-lo, coloquei-o no cesto dos papeis, com a esperança de que ele fosse apenas o ensaio do que iria passar para a oralidade e não apenas mais uma mágoa emudecida.
Afinal, quantos sons não existem calados à espera de ânimo, de audácia, para ultrapassar os seus medos e conquistar o direito, a liberdade de ser-se quem se é?…


terça-feira, 9 de abril de 2013

Post.it: Na fila do supermercado

Neste fim de semana tudo me corria mal, o relógio parecia divertir-se com a minha tentativa para o acompanhar, com o meu efémero desejo de o ultrapassar, mas nada feito, todas as marcações resultavam numa infinita espera. Senti-me, salvo a enorme distância e a absurda comparação, como no tempo da 2ª Grande Guerra em que se tinha de ir para a fila de tudo. Mas lá estava eu na fila para o cabeleireiro folheando vorazmente uma revista da moda. Depois na fila da farmácia, seguidamente na fila da costureira, passando pela fila da gasolina. Tentei acalmar-me na fila do café, mais que não fosse na ante-visão de satisfazer o vício. Por fim a minha manhã parecia ir terminar na fila da caixa de supermercado, porque tinha estrategicamente evitado a fila do peixe e da carne. Fiz a minha escolha de caixa num raciocínio de lógica quase matemática, só estava uma pessoa à minha frente, suspirei, será que vou conseguir recuperar o tempo já perdido? Será que vou ter um bem-sucedido encontro com os ponteiros, tudo parecia indicar que sim. Mas havia uma suspeita a tilintar-me por dentro, a campainha da intuição obrigou-me a dirigir um olhar mais atento à pessoa que estava à minha frente. Não sei descrever a sua imagem, o aspecto físico, a expressão do rosto, o que vestia ou outros detalhes porque na realidade não lhes dei importância. A minha atenção foi dirigida aos gestos, à lentidão da acção e sobretudo à extrema, mas mesmo extrema arrumação de cada produto sobre a passadeira da caixa. Tentei perceber o que dava tanta harmonia à disposição dos produtos: seriam  as cores, a dimensão, a forma redonda e quadrada? Não encontrei resposta. Meio curiosa, meio hipnotizada, já a imaginação me dançava uma valsa lenta entre células e neurónios. Será que a sua vida seria assim tão arrumada, os seus pensamentos, os seus sentimentos, desejos, vontades? Será que arrumava a tensão sem “roer as unhas” nas filas de espera? Será que dava aos outros essa mesma calma, essa mesma harmonia? Invejei-a, queria tanto ser como ela, calma, ponderada, harmoniosa, caminhar sem urgência como se soubesse que não precisava ter pressa porque a meta estava à minha espera. Uma meta de sucesso, de alegria, de felicidade. Uma meta concretizadora de sonhos, uma meta com alguém que faria sempre parte da minha vida e de mim, sem ter lutar, sem ter de fracassar, apenas e sempre caminhar firme e serena.
Mas o relógio tirou-me desse doce torpor, o almoço estava à espera para ser feito, as visitas deviam chegar na hora marcada e ainda havia tanto por fazer. Como não tinha começado a tirar as minhas compras do carrinho do supermercado, fiz uma rápida inversão de marcha e mudei de caixa, mudei de fila, que apesar de ter maior dimensão, estava cheia de gente apressada como eu. Pessoas stressadas como eu, pessoas que não saboreavam o tempo como eu. Pessoas que não tinham harmonia, que não tinham calma, que não tinham tempo.
Se um dia a voltar a encontrar, vou pedir-lhe que me ensine a saborear o prazer de cada dia. A apreciar a beleza da viagem sem me preocupar com a chegada. Afinal, o futuro, seja qual for, pertence-nos, e o presente passa demasiado rápido para que desperdicemos a oportunidade de o viver.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Post.it: Onde nascem as palavras?


Onde nascem as palavras? Nos livros apressa-se alguém a responder. Porque é assim que a nossa memória imediata funciona, no agora, esquecendo-se que houve um antes. Esse antes, quando nasceram as palavras. Mas onde? Continuei a inquirir, onde nascem as palavras? 
Não questionei por ignorância mas por curiosidade. Porque bem sei que as palavras sempre existiram, desde que romperam o silêncio da oralidade e muito antes quando puseram fim ao silêncio do pensamento e do sentir. 
Quando se juntaram a outras para expressar uma vontade, um desejo, uma dor, uma tristeza, uma alegria. As palavras nasceram dentro de nós, quando o choque de neurónios produziu um relâmpago e a trovoada ressoou na nossa voz. 
Era apenas um som sem aparente significado mas que passou a significar muito quando foram recebidas e amadas por um receptor atento e ávido delas. Então as palavras deixaram de ser palavras, passaram a ser sentimentos. Claro que expressos por palavras, escritas, lidas, ouvidas, sentidas, mas de repente todos esqueceram a origem das palavras para ficarem apenas atentos à sua mensagem.
As palavras, na árdua tarefa de conjugar letras para formar frases cada vez mais elaboradas, refinadas, eloquentes, eruditas, perderam-se muitas vezes algures entre a razão e o coração e sendo as mesmas desde há milhares de anos, concluímos um dia que por vezes é preciso reaprende-las e mesmo entendê-las no seu silêncio. Lá, onde nascem as palavras.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Post.it: Um Pomar em retrospectiva

Para os que ficaram curiosos sobre o desenlace daquele incidente no Pomar, devo referir que aquele foi apenas o primeiro osso que o meu amigo partiu, mas que a todos eles sobreviveu exibindo alegremente um gesso cheio de autógrafos e desenhos abstractos  Mas lá diz uma figura pública da nossa praça, “criança que não partiu um osso não teve uma infância feliz”. Fazendo jus destas palavras, “também fui uma criança feliz”.
Mas a lembrança que me ficou  mais marcante sobre aquele Pomar e que me deixou um rasto de  infância pela vida fora, foi a forma como o meu olhar se encheu de flores, de cores, de cheiros, de sensações que me invadiam o peito e que me dançavam e dançam, no pensamento.
Aquele Pomar de árvores frondosas, carregadas de frutos. Aquelas terras que se estendiam para lá do horizonte, desenhando um caminho de infinito que chamava por mim, como se para lá fosse o meu destino. E por ele segui quando para trás deixei aquele Pomar de perfumadas maças, que ainda hoje me exalam nos sentidos. Por vezes fecho os olhos e ainda ouço as águas do riacho a correr, ainda ouço o riso alegre dos meus amigos enquanto saboreavam as maças roubadas e relatavam à sua maneira a grande aventura. Não nos imaginem já o pronuncío de futuro de marginalidade porque posso garantir cada um de nós trilhou pela senda de bons e exemplares cidadãos. Mas tínhamos os nossos momentos de pequenas/grandes peripécias infantis.
“Nunca voltes aos locais onde foste feliz” diz a sabedoria popular, mas teimosamente quis contrariar esta expressão e voltei…
Já lá não estava o velho de olhar frio mas de coração quente, aliás, ninguém se lembrava dele. O pomar pareceu-me pequeno, as árvores muito mais baixas, tão baixas que quase parecia absurdo alguém cair delas. “O Pomar não encolheu, tu é que cresceste”, confirmaram o que já sabia, mas duvidava na observação.
Vi o seu limite tão finito, fiquei triste, como se me tivessem roubado um pouco da infância. Com pressa meti-me no carro, acelerei, fugi daquele lugar, antes que reencontrasse outras memórias e a realidade do agora as rasgasse da minha lembrança, como se fosse um papel amarelecido e sem valor que se podia deitar fora sem antever a importância pessoal de cada linha que o tempo nele escreveu.
Parti, não olhei para trás tentando guardar a certeza de que o passado continuava lá para preencher de vez em quando o meu presente e quem sabe para um dia o contar ao futuro.


quinta-feira, 4 de abril de 2013

Post.it: Longos dias tem a noite


E o sono não vem e o sonho não adormece e a alma não esquece. Sem sol nem luar, esta noite sem acordar não acontece. As horas continuam a tardar, num passo lento que parece não ter onde chegar.
Porque a noite tem longos dias, em que mergulha nas maresias de um oceano cada vez mais infinito e é eterno o seu silencioso grito, múrmuros de lamento, que esvoaçam no vento, qual gaivota que busca terra segura onde encontre uma duna de ternura.
E cintilantes, as estrelas, perscrutam por entre as janelas, em busca de uma entreaberta, onde encontrem a felicidade certa. Mas as ruas estão cheias, estão cheias de solidão, nelas não se encontra o mais terno coração. Se ao menos o sono viesse dar-me o seu encanto, se ao menos a chuva não soubesse a pranto, a alma voaria e o dia nasceria depois de uma noite na esperança enlaçada, longa, tão longa, de tão ansiada.
Que entre feliz e amargurada, que se delongue pela madrugada. Porque longos são os dias que me deixam acordada, nessa espera que demora, não chega, não se vai embora e me deixa sem nada, nem uma noite descansada.


quarta-feira, 3 de abril de 2013

Post.it: Introdução


Busco um livro sem final, para acrescentar o meu. Procuro um livro sem fantasias porque a realidade também pode ter um final feliz. Basta escolher o caminho certo, tomar as decisões mais correctas. Basta seguir o coração, e, ir com ele para além da razão. Não garanto que seja fácil, não garanto que tudo dê certo, vai ser preciso lutar, contrariar os ventos e as marés. Vai ser preciso circular por vezes em contra-mão, desafiar os perigos, magoar-se, arriscar. Seguir em frente mesmo quando nos apetece parar e conformar-se com o que é fácil. Acreditar, acreditar mesmo quando não há certezas. Quando a dúvida nos asfixia, quando todos nos gritam que não e nós sussurramos no último fio de voz um sim em que queremos confiar. Mesmo quando já não temos confiança e, no entanto continuamos a caminhar naquela direcção, a deixar que a lua nos roube o sono e nos encha de um breu mau conselheiro. Mas o sol volta a dar-nos ânimo e esperança, por vezes uma nuvem tenta ocultá-lo na sua majestosa escuridão, mas há sempre um raio mais persistente, mais teimoso, que rompe o nevoeiro e sorri-me num gesto de incentivo que diz “continua, não pares, eu vou à frente para iluminar o túnel”. Então caminhamos, cegos de cansaço, mortos de desesperança, mas firmes no voltar de cada página, porque o final da história aguarda-nos como uma meta pronta para ser cortada.
Ergo os olhos exaustos da leitura, descanso o coração empolgado pela memória daquelas linhas, outros olhos observam-me, olhos muito abertos em suspense da continuação, ávidos por uma conclusão “E então, e então, o que aconteceu depois?”. “Meus queridos netos, o depois fica para amanhã que agora já estou cansada de ler”. “Oh, só amanhã é que conheceremos a tua história e saberemos se houve um final feliz? Ainda falta tanto tempo para amanhã”. Os jovens, sempre tão impacientes, como se o tempo não corresse a seu favor, quando tudo, mas tudo corre na sua direcção. Mas não leio mais, não por cansaço como me desculpei, mas com receio de os desiludir, de não encontrar na minha história um final feliz, apenas momentos de felicidade, que para os jovens famintos de ventura lhes sabe sempre a pouco. Amanhã, certamente já refeita da emoção de recordar as minhas memórias, invento-lhes um final feliz, para que continuem a acreditar que o seu pode ser um deles.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Post.it: Celebrando a vida


Os anos são lições de sabedoria que na sua vinda temporal nos vão oferecendo, quando chegam, quando ficam para contar a história do seu caminho.
Um caminho que os trouxe até nós. E nós celebramos a sua chegada, desembrulhando esse presente doce/amargo. Entre parabéns pela chegada a essa meta, com votos de felicidades para que o vivamos gratos pela dádiva de vida…
Quantos anos celebramos? Poucos, muito poucos para tudo o que ainda temos para fazer, para sentir, para partilhar, para crescer, para sonhar e concretizar. Há muitas Primaveras a espreitar na janela do olhar, há muitos Verões de um sol emocional que nos quer sorrir, muitos Outonos ansiosos de renovação para afastar as folhas amarelas que nos magoaram e dar lugar a possíveis recomeços, há tantos Invernos de braços abertos desejosos por abraçar com carinho a fonte dos nossos desejos.
E o bolo, e as velas, o champanhe e os amigos? Não falta nada, só a fotografia da praxe, juntem-se todos, bem apertadinhos, para caber não na foto mas no sorriso de amizade que se estende pela casa fora, pela vida fora…
Por fim chegou a noite do nosso dia, por fim repousamos o corpo, aquietamos o coração de tanta celebração, aconchegamos a alma no calor do peito e suspiramos sentindo que esse dia foi especial, não por nos ter levado a essa baliza temporal, mas por nos indicar um novo caminho nesse ano etário que se nos oferece novinho em folha, sem mácula de passado, e com a luz perene de tanto futuro, nesse aniversário que não tem nada, nada que nos impeça, de sermos felizes.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Mintam-me

Digam-me que a crise acabou,
Que o amor regressou.
Que as andorinhas chegaram,
Que as nuvens secaram.
Que o sol vai brilhar,
Que a esperança vai aumentar.
Que o dia vai sorrir,
Que a mágoa vai partir.
Que o sonho vai acontecer,
Que as flores vão renascer.
Que a lua ainda tem luar,
Que as estrelas vão cintilar.
Que o mar ainda conta histórias,
Que a vida ainda tem boas memórias.
Que o céu ainda é azul celeste,
Que a terra não é sempre agreste.
Que a tua porta ainda está aberta,
Que a minha alma não está deserta.
Que o coração vai ser um ninho
Que nunca irá ficar sozinho.
Mintam-me, preciso acreditar,
Que ainda há algo porque lutar.
Que a mentira é apenas a verdade,
Que demora a tornar-se realidade.