sexta-feira, 31 de março de 2017

Post.it: As manhãs

Que palavras madrugantes me fazem erguer e ver o sol, cumprimentar a chuva, não sei, na verdade não as ouço, mas sinto-as a vibrar em cada célula do meu ser. Então corro, talvez já não tanto quanto corria noutros tempos, também já não tenho razão para isso, a vida espera-me em cada recanto, em cada esquina de uma rua, já não preciso de ir à procura dela. Não tenho mistérios para procurar, nem  curiosidade sobre o amanhã, tenho o hoje e vou vive-lo até ao último segundo da décima segunda badalada.
Instalei-me na rotina, talvez seja errado, mas sabe-me bem, como se fosse um sofá que já conhece cada curva do meu corpo e as contorna, acaricia e aconchega, é difícil sair desta área de conforto, sinto que a mereço, que a conquistei em batalhas ganhas e perdidas. 
Mas no final percebi que nada nem ninguém merece ser-me uma guerra, então sorriu, o sorriso é a única arma letal que agora uso para enfrentar as intempéries humanas, porque o hoje tem de adormecer tranquilo, sem motivos que me impeçam de sonhar, de acreditar que tudo se resolve e que não há dor alguma que valha apena causar ou sentir.
O sol volta a brilhar, a chuva volta a cair, o vento a chegar, a terra a florir e eu, simples pessoa, feliz por te ser anónima deixo-me navegar pela tua curiosidade, um olhar que tem palavras que não quero ouvir. Prefiro o edílico platonismo de cada encontro, e neste jogo de adivinhas, idealizo-te em voos de asas estendidas que desenham no céu hieróglifos modelares do coração. 
Sim porque só ele, o coração, consegue murmurar com voz de cânticos estivais, as palavras madrugantes que nos fazem acordar e continuar a sonhar deslumbrantes realidades.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Post.it: As visitas

Este fim de semana estive com os meus primos, há quanto tempo não nos encontrávamos? Há muitos. Não questiono as razões, já há muito que saí da idade dos porquês, prefiro aproveitar o momento presente sem questionar o passado. Claro que há culpas que nos ficam desse silêncio que o tempo no seu passar causou. 
Mas quando há amizade, afecto, o tempo não cria distância, talvez pelo contrário, as saudades tornam-se beijos e abraços repetidos e as novidades boas são muitas, as más, felizmente poucas.
Uma priminha casou, já tem um filho com quase um ano, lembro-me dela, era ainda uma menina. A outra já vai no segundo filho, é lindo loiro com cara de anjo e sorriso traquinas. 
Os pais vão envelhecendo, a doença torna-se uma presença quase constante, entristece-me, entristece-nos, tanta alegria, jovialidade de repente roubada pela violência da falta de saúde. A morte, sim também a morte foi notícia, uma notícia má, a pior, recente, sobretudo para quem a recebe inesperadamente.
A prima Conceição, partiu há 7 meses. Lembro-me dela, era a “festa” em pessoa. Enchia uma casa, a sua onde eu entrava e era recebida com “desaforos” algarvios, mas eram de alegria. Na minha casa onde vinha de quando em quando de repente havia uma luz mais luminosa, uma musicalidade de vozes.
Na casa da sua irmã em Sesimbra, aí então, eramos muitos na mesa comprida, mas nada parecia longe, e todos estávamos em harmonia familiar. 
Partiu, não, ficou! As pessoas que nos alegraram, que amamos, que nos amaram, ficam para sempre num recanto de nós. 
O seu marido parece uma vela apagada, caminha triste, devagarf, como quem não tem rumo, “faz-me falta”, foram quase 50 anos de casamento, quase porque faleceu um dia antes de os completar. 
Olho para os meus primos, vejo como estão, lembro-me de como eram, não se trata de alterações no corpo, na face nem os cabelos mais brancos ou a rarear, trata-se do brilho do olhar que lhes fugiu, trata-se do sorriso que empalideceu.
Então concluo, não importa no que nos tornamos, mas o que vivemos, isso permanece em nós. Permanece neles, apesar dos pesares, vejo-o no meu primo Zé Maria, que me ensinou a dançar quando eu tinha 10 anos, tinha vindo da praia com  um escaldão nas costas e nem a sua mão a tocar na pele queimada me doeu  tal era a sua delicadeza, tal era a minha alegria por estar a “dançar” porque realmente sempre fui um pouco “pés de chumbo”, de tão trapalhona, mas ele ria e pacientemente, ensinava-me. Apesar de ter sido um bom professor, confesso, não fui boa aluna.
Gostei de ver os meus primos, mesmo com as partidas, há sempre as novas chegadas para tentar compensar. É o ciclo da vida e aprendizagem que cada um faz dela, aprendi, continuo a aprender. 
A vida é para ser vivida ao longo do seu caminho, pode ser uma boa companhia depende de muitos factores, inclusive da forma como caminhamos também com ela.


sexta-feira, 24 de março de 2017

Verdades

Dantes fingia-se,
Gostava-se de toda a gente.
Dantes fingia-se,
E viva-se assim contente.

Hoje é-se verdadeiro,
Fria realidade.
Hoje é-se inteiro,
E vive-se sem amizade.

Porque a verdade,
É pico de roseiral.
Pétala de sinceridade,
Haste que nos faz mal.

Dizem é mau fingir,
Mas é bom sorrir.
Mesmo que a fingir,
Ou até sem sentir.

Um sorriso é abraço,
Um sorriso é solidariedade.
Encurta-nos o espaço,
Confere-nos humanidade.

Troca-se tudo pela ilusão,
Em nome da sinceridade,
Que parece dar ao coração,
Incerta e aparente liberdade.


segunda-feira, 20 de março de 2017

Post-it: Bem vinda Primavera

Todos os anos me surpreende a chegada da Primavera, pela gentileza das suas flores, pelo aroma da terra, pela luz do seu céu, pela festa dos pardais, pelo voo celebrante das andorinhas. Tudo isto e muito mais no oferece esta estação do ano, depois de um inverno fustigante e frio, depois da nossa pegada humana pisar com indiferença cada flor em luta para sobreviver às intempéries, à poluição e à inundação do betão citadino.
A Primavera com a sua vontade de florir, de renascer espreita primeiro sorrateira, depois, quando damos conta, está em cada recanto, até mesmo naqueles em que nos parece impossível aparecer. Deslumbra no seu colorido, com tons que os mais famosos pintores tentaram reter na tela sem o conseguir na sua totalidade, porque a natureza tem tonalidades inigualáveis. Tem formas únicas, aromas ímpares, suavidades próprias.
A primavera que também nos acontece quando o coração descongela do frio emocional. Quando o olhar se enche de cores de esperança, quando aqui e ali nos renascem sonhos floridos, quando os pulmões inspiram aromas já esquecidos.
“Todos os verões hão-de arrefecer nos ventos marítimos, todos os Outonos hão-de partir nas folhas amarelas, todos os  Invernos hão-de ser apenas o caminho para a Primavera sorrir”.
E mesmo “Que o inverno me cubra a cabeça a eterna Primavera vive no meu coração”.
Por isso, “Não me falem do aproximar da velhice, mas apenas de Primaveras antigas”.


sexta-feira, 17 de março de 2017

Post.it: Sabe-me bem ler-te

Gosto de te ler, mesmo que sejam apenas umas poucas linhas, umas poucas frases, algumas poucas, palavras. Leio-te, releio-te. Encontro as tonalidades da escrita, os diferentes sons que parecem mudar, enriquecer-se a cada leitura.
Ouço-lhe risos, sinto-lhe abraços. Por vezes até lhe encontro uma lágrima caída na perna de uma letra que discretamente se aninha na outra, como se se quisesse esconder, uma pequena gota de água, incauta, e fugidia, mas que se revela na sua timidez envergonhada.
 Olho-a, sinto-a, quase, apenas quase que a recebo nas minhas mãos, com o carinho de quem percebe e compartilha de tal mágoa.
Mas nesse momento, também eu escondo na mais displicente vírgula, quem sabe escorregue e se afogue na branca folha, já não de papel.
Estamos noutra era, dizem os entendidos, que assim seja, pouco importa se os tempos mudam desde que os sentimentos continuem a aflorar com melancólica alegria, com melódica tristeza, é isso que nos define humanos, verdadeiros no sentir mesmo que escondido, disfarçado nos espaços entre linhas, encoberto na ténue união das letras, camuflado no sentido das palavras.
Por isso, gosto de te ler, de te encontrar, em cada linha pintada de sentidos furtivos, de devaneios ocultos, de sonhos secretos.
Gosto de te ler, mesmo quando as palavras demoram, é sempre com alegria da chegada que te recebo. É suave a dor da espera, a ansiedade pela antecipação de algo bom que vamos receber. Pode ser uma missiva curta, um diálogo sem grande conteúdo, mas que importam os grandes lirismos repletos de artificiais sentidos? Basta um olá, de letras pequenas, redondas, carregadas de amizade, carinho, ou apenas de atenção, respeito, admiração. Olá, respondo, Olá? Pergunto, como estás, quero que estejas, onde estiveres, estejas muito bem.
Aí a minha imaginação, aí o meu incongruente coração. Fantasias da solidão? Talvez, quem sabe. 
Só sei dizer que me sabe bem, ler-te…

segunda-feira, 13 de março de 2017

Post.it: As nossas nuvens cinzentas

Ainda o inverno mal se acomodou sobre a terra ainda ávida das suas águas, já primavera ressoa nas vozes que a esperam com braços de abraços de flores e andorinhas. É o tempo  a voar-nos num sopro de vida, e nós incautos sonhadores de pensamentos ao vento, deixamos que nos roubem momentos em que queremos apenas aprecia-los,  senti-los, vivê-los como se tudo parasse e nada tivesse pressa de chegar a algum lugar por longe que seja, por necessário que fosse lá estar em breve.
Assusta-me a primavera, este cheiro respirante de flores que começam a exalar e ainda são apenas botões que não se adivinha a espécie colorida que vai emergir.
Em breve será verão, os sorriso das crianças que se lhes desenha no rosto, fala de férias, de manhãs tardias, de noites longas,  mergulhos na praia, as corridas na areia, anseiam por despir as camadas de roupa e libertar a pele do jugo do frio.
De repente, abraço-me à camisola felpuda, mergulho no quente dos cobertores e sonho que o tempo é a infinitude da vontade de cada um e eu quero, que o inverno seja lento e aconchegante no seu passar, não tenha pressa em regar as flores, em soprar para longe as nuvens e o nevoeiro que nos acalenta.
Sim bem sei que cada estação vem na sua data, que tudo acontece no tempo certo indiferente ao nosso tempo, mas gosto, acreditem que gosto do inverno. Essa estação do ano incompreendida, mal amada, mal resolvida por sentimentos sombrios. Porque quem tem luz no olhar, não são as nuvens cinzentas que vão escurecer o seu céu de esperanças esvoaçantes, de sonhos cantantes.
Não culpem o inverno das vossas dores, da vossa tristeza, quando são vocês, apenas vocês que são tristes.
Afinal não é o verão que os vai animar, que vai curar as vidas magoadas, queixam-se do calor, que sufocam, anseiam por ventos e marés, pelo assentar da poeira das estradas e dos passos cansados.
O tempo, leva sempre com as culpas, as nossas culpas, porque nos foge, porque não nos leva no seu voo em direcção ao infinito. Prossegue a sua marcha sem que consigamos calçar os seus sapatos.


sexta-feira, 10 de março de 2017

Soneto do desencanto

Era a cidade,
Era o sol.
Era a saudade,
Era um rouxinol.

Era a praia,
A onda quebrada.
O vento na saia,
O cheiro a madrugada.

Era o horizonte,
Era tudo tão longe,
Que se tornou ponte,

Para unir o nosso recanto.
Era o amanhã, era o hoje, 
Mas só ficou o desencanto.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Post.it: Placebo

“Sempre tive muita imaginação e devido a isso sou uma pessoa feliz”. Eis uma frase que me disse muito, claro que para isso tive de usar a imaginação e tal como a autora dela, felizmente também tenho muita o que algumas vezes me tornou uma pessoa feliz.
Quando era criança, imaginava os brinquedos que não tinha e brincava com eles horas infinitas. Um dia resolvi levar a imaginação mais longe e imaginei que tinha os pais perfeitos e na minha imaginação, foram-no.
Como deu resultado, continuei a imaginar e imaginei a irmã perfeita, os amigos perfeitos, as relações perfeitas, os empregos perfeitos, os colegas perfeitos, os chefes perfeitos. E o meu mundo, era dentro da minha imaginação, perfeito, quase sólido, quase palpável e com algum, por vezes muito, esforço, quase verdadeiro.
No yoga aprendemos, com muita prática, que os pensamentos podem ser mudados, orientados e que o cérebro aprende a acreditar que são autênticos e por isso relaxa e envia mensagens de positividade ao corpo. Desaceleram-se as células, distendem-se os músculos, pacifica-se o coração.
E isso resolve? Não. E isso cura? Não. Mas tal como um placebo, atenua os efeitos do problema. Só é preciso acreditar que o placebo é afinal o medicamento certo. Que tem nele a dose certa de esperança, com uns pozinhos de ilusão, outros tantos de confiança ao qual se acrescentam alguns de expectativa e sobretudo muitos, mas muitos mesmo de ousadia e de desejo.
 Depois, temos que acreditar, acreditar bastante, diminuindo as nossas exigências, baixando o nosso índice critico. Aprendendo a aceitar sem recriminar. Cada um é como é. Só a nós podemos mudar para caber na imaginação dos outros, porque também eles querem, filhos perfeitos, pais perfeitos, amigos perfeitos, empregados perfeitos… 
No fundo tudo se resume à dose certa de imaginação, terreno fértil para as nossas verdades, jardins onde um dia colheremos, quem sabe, botões de felicidade.

sexta-feira, 3 de março de 2017

Post.it: Dias de chuva

A chuva, coitada, mal amada, rejeitada por ventos e marés. É a culpada de tudo, da subida das águas, da correnteza dos rios, das ondas dos mares, das poças que um carro ao passar levanta e nos  banha, de nos deixar molhadas encharcadas até à alma. A chuva que leva com as maiores culpas, com todas aliás, até a de solidão, porque nos isola dentro de casa, porque nos impede de ver além dos pingos, entristece-nos, sufoca-nos com o seu barulho ao cair sobre as pedras da calçada, das goteiras, batendo nos carros, nos vidros da janela.
Sim a culpa é da chuva, porque nos sentimos assim, como se nos chovesse por dentro. E no entanto, confesso, já fui muito feliz em tantos dias de chuva, em que chovia lá fora, mas aqui, dentro do peito havia um sol radiante. “O tempo de fora não conta quando é verão dentro de nós”.
É verdade que quando o céu fica cinzento, como se fosse um espelho reflete-se em nós e os nossos olhos incapazes de brilhar por si só, ficam também eles cinzentos, murchos, tristes. Uma tristeza que vem do horizonte, que nos entranha pela pele, que nos chega a todas as células de energia anímica.
De repente, somos nuvens carregadas de mágoa. De repente, somos vidas carregadas de um vazio que nos pesa toneladas, de uma solidão que nos invade os pensamentos, os sentimentos. Mais uma vez, pensamos, desejamos, que a culpa seja da chuva.
Mas não é, neste caso, não é. Porque a solidão não é viver só, a solidão é sermos capazes de fazer companhia a nós próprios.
E a chuva, quer queiramos, quer não, faz-nos companhia. Rega as plantas e os campos, enche barragens para termos água e energia, lava as ruas, lava a poluição do ar, enche os rios, os mares para ser caminho de barcos. 
É tudo uma questão e se ver com o olhar límpido, com o coração leve, com um sorriso. Se chove, vamos dançar com a chuva mesmo que com o guarda-chuva aberto.

quarta-feira, 1 de março de 2017

O lar das memórias

Que bom é ser-se velhote,
A quem tudo é desculpado.
Ser recebido até sem dote,
No “lar” de regime fechado.

À noite ressona um vizinho,
O estranho que se torna amigo.
Porque não me deixa sozinho,
E partilha os seus dias comigo.

Quando as nossas memórias,
Começam a contar histórias,
Por vezes de mera confusão,
Que o tempo tornou perdão.

Talvez com alguma verdade,
Ou num misto de invenção.
Mas crescem em saudade,
E nos embalam o coração.

Amores quiçá, sonhados,
Só em nós concretizados.
Quando a ideada felicidade, 
Nos preenche a realidade.