segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Tecendo a rede

Toda a vida é morte,
Diz cozendo a rede o pescador.
Desencontrado da sorte,
Em cada encontro com a dor.

Morreu-me a infância,
Partiu-se-me a juventude.
E com elas toda a alegria,
E com elas toda a virtude.

Morreu-me a madrugada,
Onde me crescia o sonhar.
Partiu até a mulher amada,
Levando-lhe os filhos do lar.

Morreu-me cada dia,
Em que o mar roubava vidas.
Vestiu-me de penosa maresia,
Em luto de tantas despedidas.

Toda a vida é morte,
Anos, meses, dias, horas.
Que partem para o desnorte, 
Na rede em que me demoras.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Post.it: Natal em Novembro


Gosto do Natal em Novembro, quando as luzes coloridas se começam a acender, quando as montras se enchem de coisas bonitas, quando as prateleiras das lojas se enchem de brinquedos sorridentes, reluzentes. Quando as caixas das bonecas ainda estão inteiras, quando as pilhas dos bonecos ainda funcionam e quando lhes tocamos nos dizem olá e outras palavras com infantil doçura. 
Quando as pessoas encasacadas e com cachecóis quase só deixando ver os olhos nos lançam um olhar brilhante e sorridente, parece estranho mas sem lhes ver a boca vemos-lhes o sorriso, estampado na face rosada de frio. 
Gosto do Natal em Novembro, quando ainda não há corrida para as compras, quando ainda não há fila para os embrulhos. Quando ainda sonhamos com um Natal perfeito, em que tudo vai correr bem, que todos vão receber a prenda que desejam, que não há lares de mesa vazia, lares sem família, lares de tristeza, de doença, onde a partida parece eminente onde a dor parece permanente, lares onde o Natal não entra pela porta nem pela chaminé. Mas em alguns desses lares, o amor sobrepõe-se às dificuldades e há noite contrariando o cansaço e o sono, alinhavam-se bonecas de pano, bolas de restos de tecido, para que os filhos tenham no sapatinho um pouco de Natal. E quando nem isso têm para lhes dar, passeiam de mãos dadas pelas ruas iluminadas, levam os filhos para ver as montras recheadas e deixam que sonhem, porque só o sonhar lhes podem oferecer, é grátis, dizem numa tentativa de esperança que a dureza dos dias frios ainda não lhes tirou. 
“À noite, um cházinho e uma fatia de bolo Rei que nos ofereceu a paróquia e está celebrado o Natal, para o ano será melhor, e olhe, desde que haja saúde já nos damos por felizes”, garante aquela senhora com idade indefinida, deve ser jovem, pelo menos olhando à idade dos filhos, essa prole de anos em escadinha que caminham em fila saltitante, são 4. “5 corrige-me a corajosa mãe, abrindo o casaco e revelando uma gravidez avançada, “deve nascer por volta do Natal, vai ser o meu menino Jesus e vai-se chamar Jesus!. Era costureira numa fábrica que dispensou mais de metade dos trabalhadores, e ela veio-se embora, agora faz pequenos arranjos de costura em casa e toma conta dos filhos, “sempre se poupa no infantário”. 
Gosto do Natal em Novembro quando a azáfama ainda não nos sufocou, quando o receio de esquecer alguém ainda não nos criou ansiedade. Quando os dias ainda têm 24 horas, porque depois sentimos que diminuem e rapidamente aproxima-se a festa do Menino. 
Gosto do Natal em Novembro, de o saborear entre um café e a companhia das amigas que começam sem pressa a planear o Natal, “este ano vai ser na casa dos meus sogros, o ano passado foi com os meus pais”, “os miúdos este ano passam a noite de Natal com o pai e a dia comigo”.  
Gosto do Natal em Novembro quando uma espécie de ternura nos começa a envolver e de repente outros Natais vêm-nos à memória, Natais da infância com os pais, avós, tios, primos, amigos, com os que ainda estão já mais velhos mas que ainda reconhecemos pela afabilidade das palavras e pela candura gestos de amizade, outros, já partiram, mas ficaram e estão connosco em todos os Natais.  
Gosto do Natal em Novembro, quando o Menino nos começa a “renascer” na alma e a preparar-nos para a sua festa em Dezembro.   
Quem me dera que o Natal fosse em Novembro, mas também em Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, todo o ano, todos os anos, em todos os lares, em todos os corações. 


segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Momento adiado

Guardo de ti na memória,
A suavidade de um rosto lunar.
Guardo secreta a nossa história,
Onde só o coração pode guardar.

Nessa semi-escuridão,
Brilha o estranho mistério.
Que nos leva onde só vão,
Sonhos de um outro hemisfério.

Guardo de ti a voz calada,
Onde todas as palavras falavam.
Como se fosse a madrugada,
Onde os raios de sol brincavam.

Um ultimo sonho acalento,
Daquele adiado momento.
Saber do teu arrependimento, 
Por teres esquecido o sentimento.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Post.it: O dinheiro não compra...

Conheço pessoas impossíveis de se aturar, pessoas impossíveis de se gostar, no entanto casaram, tiveram filhos, pais, avós, tios, primos, etc. Questionamo-nos com, porquê? Alguns mais pragmáticos, sugerem que são pessoas “interessantes” pelo seu dinheiro. Que os seus bens compram o amor, a dedicação, a amizade e tudo o mais. Será? Custa-me a aceitar que o dinheiro tenha tal poder, mas por outro lado, quando essas pessoas abrem a boca e de lá sai um role de disparates, de insensibilidade, de agressividade, duvido das minhas próprias dúvidas e chego a acreditar que só o dinheiro pode comprar alguma paciência para os aturar, para os suportar.
Olho-os e procuro encontrar neles a criança que foram, estará lá em algum recanto do seu ser? Mataram-na, só pode! Garantem-me. São assassinos da ingenuidade, da humildade, da solidariedade, da esperança, do sonho. Acreditam, têm fé em si, instrumentos de guerra pessoal. E no entanto estes “grandes homens” tão “cheios de si”, que ofendem, que anulam, que usam, que pisam, são pequenos homens. Com gigantes medos, medo de não conquistar, compram, com medo de não receber, rodeiam-se de luxuosos brinquedos, com medo da solidão, compram a companhia. Um dia, mais tarde ou mais cedo, confessam-se “tão inteligente e tão parvinho”. E surpreendidos, vemos-lhes o medo, um medo de tudo e de todos, da vida, da morte. Um medo humano, não de carne e osso, mas de coração, de paixão. A criança que foram, afinal não lhes está completamente “morta”, esteve escondida, assustada, perdida. Nos momentos em que espreita, tem apenas um desejo voltar para lá, para a vida uterina, para antes de nascer, de ser e ter de fingir que não é o que é.
E reconhecem sem o dizer que “ nunca de lá deviam ter saído”. 
Quantos e quantos não estarão a concordar com esta afirmação. Eles e a história da humanidade no seu passado, presente e futuro, unem-se nesse mesmo desejo. 
Porque nós que não podemos “comprar” o seu silêncio, as suas acções imponderadas, os seus erros, as suas guerras, para que não cheguem a concretizar-se, resta-nos outras formas de luta através do medo que nos aumenta a coragem.


terça-feira, 15 de novembro de 2016

Post.it: Palavras molhadas

Lembro-me bem, era miúda que as palavras lhe caiam pelos olhos. Sim as palavras, não estou a dizer tolices, nem  iludida pelas memórias da infância. Também estranhei na altura, mas descobri depois, muito depois, que as palavras podem realmente ser expressas de diversas formas. Aquelas, juro, saiam-lhe pelos olhos em rios de água que emergiam do coração e caiam em cascatas incontroláveis no chão.  Lembro-me de pensar e se as palavras não parassem nunca mais? Devia surgir uma inundação e com ela nunca mais haveria silêncio, tremi. 
Eram lágrimas disseram-me, tentando explicar à minha tenra idade a ignorância manifesta do que dizia, mas insisti, “Não! São palavras molhadas de dor”. 
Já nessa altura, recordo, que me expressava de forma estranha para muitos, incompreensível para outros. “Esta miúda fala como se estivesse a falar de livros”. “Como se estivesse dentro deles” retorquía outra voz pesarosa do meu suposto defeito genético. Mais consolara outra voz dizia num suspiro reconfortado “ É o seu mundo…”. 
Sim era o meu mundo, com tantos amigos, com tantas histórias, mas não infantis, dessas não gostava, eram para adormecer bebés e eu já era crescida, apesar de ainda mal chegar à mesa das refeições. 
Preferia leituras “mais crescidas”, eram mais interessantes e continham subtis lições de vida. Que tardes amenas tristes e alegres passava na companhia de  Dostoievski, Tolstoi, Zola, Sartre, V. Hugo. Heróis sem capa e espada, mas com o poder de darem aos meus olhos de miúda, um antagónico  daltonismo que me fazia ver  tudo à  volta com cores que ninguém mais via: o azul que era mais azul que o céu; o branco mais branco que as nuvens; o verde mais verde que a natureza; o vermelho mais vermelho que o sangue; o amarelo mais amarelo que o sol; o preto mais preto que o luto, as lágrimas completamente opacas de palavras. 
Hoje,  as pessoas continuam a deixar cair pelos olhos algo que não sei se são palavras, vejo mas não escuto como escutava naquela altura, culpa minha por certo. Cresci e perdi a inocência, perdi as cores e já não encontro em nenhum olhar por mais magoado que esteja, aquelas palavras que lhe caiam pelos olhos. 


sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Post.it: Viagem à Índia

Não foi um passeio turístico, desses que se vai à procura do diferente, do exótico. Foi uma viagem do corpo, da alma, de dar e sobretudo de receber. Porque quando entramos num país como a Índia, na verdade deixamos o país entrar em nós. Mais do que a sua  alegria e a sua tristeza, mais do que a sua riqueza e sua pobreza, mais do que a sua cultura e os seus hábitos de vida fica-nos o olhar. Esse olhar que nem a diferença linguística consegue impedir de nos tocar, de nos falar e nós de coração aberto, escutamos e sentimos, a sua vida, a sua dor e sobretudo o seu amor. Aquele amor que resiste a tudo, que como uma flor emerge em beleza pura mesmo nas situações mais adversas. Esse amor, encontrei-o, abracei-o, mas senti-me quase minúsculo, quase fraco, e os meus braços foram demasiado pequenos para esse abraço que queria chegar a todos e chegou a tão poucos. 
Andei pelas ruas, entrei nas sua casas, bebi o chá que me ofereceram, era tudo o que tinham, não, tinham muito mais a generosidade da partilha, do fazer sentir este estranho sentir-se bem vindo. Andei sozinho e sempre me senti tão acompanhado, dos rostos das crianças, das cores das suas roupas, do seu alinhado desalinho, do brilho dos seus olhos ávidos de saber tudo da vida. A sobrevivência, a capacidade de viver e nessa vida encontrar pequenas grandes formas de ser feliz. 
Estive na Índia em vários e distintos lugares, cada um tão belo quanto o outro, na sua essência, na sua diferença, nas pessoas, nos espaços, nas cores, nos sabores, nos aromas, no alinhamento, do céu e da montanha, do verde e do castanho terra batida, pisada de tanta suave e árdua caminhada.
Na bagagem do regresso, trouxe as fotos, milhares, desejoso de partilhar o que vi, o que senti, mas talvez não chegue para entender cada sensação, é preciso lá ir, e depois disso, é preciso regressar.
Eles ficaram lá, queria trazer todos e trouxe, no coração.
 (Foto in Paulo Teia SJ, Namasté, Braga, Frente e Verso, 2016)

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Post.it: Fé

Pode aprender-se a ter fé? Pode ensinar-se a fé? Tenho para mim que a resposta é não para ambas as perguntas. A fé é cega mas vê, é surda mas ouve, é muda mas fala, fala-nos quando nós a sabemos ouvir. Um saber que não vem em nenhum manual, que não vem de nenhuma teoria, mas no sentir, quando há em nós a capacidade de a vivenciar. A fé vem ter connosco e simultaneamente caminhamos para ela, não por uma escolha consciente mas porque é para lá que os nossos passos se direcionam, é para esse lugar de espaço e tempo que olhamos, então, só então, conseguimos escutar aquele passarinho a chilrear por entre o barulho da cidade. Sempre lá esteve, sempre nos cantou, mas agora que o conseguimos isolar dos nosso ruído interior, das nossas rotinas apressadas, da nossa constante inconstância, escutamo-lo. Está ali, algures, não precisamos vê-lo, senti-lo fisicamente, basta-nos a entrega que nos dá, a entrega que lhe damos de nós, do nosso tempo. Assim deve ser a fé, uma paragem por mais ínfima que seja, uma entrega por mínima que seja, e de repente o vislumbre de algo, uma certeza, uma razão, uma resposta, uma certeza. 
A religião compreende-se, a cultura assimila-se, a educação aprende-se, mas a fé sente-se. Algumas pessoas dizem que a fé é um dom e fazem dela a sua forma de estar na vida. Outras dizem que é um chamamento e fazem dela a sua vocação. Uns e outros encontraram a fé não sei se a ensinam, sei apenas que a partilham com o entusiasmo intemporal de quem vive a descoberta da mais bela (a)ventura.


quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Os barcos perdidos

Que saudades tenho,
Dos barcos perdidos,
Dos sonhos esquecidos,
Do lugar de onde venho.

Que saudades de mim,
Quando o sol era eterno,
Até mesmo no inverno,
Brilhava num sem fim.

Que saudades de nós,
Com a felicidade presente,
E a vida cá dentro se sente,
Vibrante num cantar sem voz.

Que saudades de tudo,
Quando o tudo me elevava,
E eu tão jovem, acreditava,
Na beleza humana do mundo.