sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Post.it: Histórias da outra margem

Lembro-me de ouvir histórias, não vinham dos livros mas das vozes. Não sei se eram reais ou inventadas, mas ouvia-as, sentia-as como se fossem verdadeiras, faziam-me rir, por vezes chorar.
Eram histórias de pessoas sem rosto, mas de imediato as imaginava e elas saltitavam-me nos sonhos depois de adormecer. Pessoas que não tinham nada e que pareciam ter tudo, porque tinham o essencial, a esperança, a união da família, o trabalho honesto, a dignidade, o sentimento de honra.
Com filhos, aquelas crianças que não tinham brinquedos mas brincavam mais, muito mais do que as outras que tinham tudo, menos imaginação para construir histórias e serem felizes através delas.
Lembro-me de as sentir como se fossem histórias da outra margem, uma margem que não era geográfica, que não era atravessada por um rio ou mar, mas uma fronteira de sombras de onde surgiam vozes para as contar. Pareciam-me vindas de longe, de um lugar distante, de um tempo longínquo.
Tinham sempre um princípio de verdade, mas depois caminhavam de boca em boca, de memória em memória, de geração em geração e de repente eram outra história, tão distante da original, feita desse viver de sol a sol. 
Homens e mulheres carregados de escuridão, cansados da miséria, à noite pegavam nos filhos ao colo e junto à lareira, quase único aconchego, falavam de vidas iguais às suas mas que tinham ganho asas de fantasia e que no final da noite, já com os olhos meio fechados de cansaço e de sono, foram, felizes para sempre.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Post.it: A minha inocência

Algures entre a infância e a adolescência, perdi-te. Eras a minha alegria, a minha esperança, o que me fazia sonhar e acreditar que tudo era possível. Eras o meu eu mais franco, mais livre, mais espontâneo. Eras o meu eu mais inteiro, verdadeiro, sólido e ao mesmo tempo frágil e terno. 
Enchias-me os dias de luz, preenchias-me as horas de ventura. Eras as minhas asas, porque sim, acreditava que as tinha, e, voava por mundos maravilhosos. Bastava abrir os braços e de imediato recolhia abraços, bastava quase cair para mil braços me ampararem. Bastava dizer dói e todos perguntavam onde. 
Depois, sem saber como perdi-te. Sem perceber onde desencontrámos-nos. E os nossos caminhos nunca mais se cruzaram. 
Cresceu-me um silêncio, avassalou-me uma escuridão, dominou-me um medo, senti-me só, tão só, sem ti. 
Eras a minha alma, o meu ânimo, a força motora dos meus passos. Eras a minha meta sem horizontes, a minha coragem de negar entraves e derrubar fronteiras. Dizia tantas vezes, eu consigo, afinal descobri, que sem ti não consigo, que sem ti pouco ou nada sou. Que se eu era barco, tu eras a âncora. Se eu era mar, tu eras cais. Que podia voar porque tu me eras ninho. 
Todos riam de nós, do nosso enlace, da nossa firmeza, não lhes ligávamos, sabíamos que éramos felizes. Confiei que era para sempre e sem fazer caso dos teus avisos, dos teus cuidados, aventurei-me a crescer sem ti. Rejeitei-te, neguei-te. Vi-me crescida no espelho e pensei que isso bastava. 
Fui descobrir o que era ser apenas eu, sem ti. Cai e nenhuma mão se estendeu, abri os braços e voltei a fecha-los vazios. Doeu e ninguém curou a minha ferida. 
Pensei, estou sozinha, responderam-me que apenas me tinha tornado adulta. 
Não! Gritei, não quero ser assim, quero voltar para ti, mesmo que te chamem ingenuidade, inocência, que se riam de nós por ainda acreditarmos que o sol brilha quando lhe sorrimos. 
Volta inocência, para voltar a voar sem asas, para voltar a ter confiança.  
Preciso de ti para sentir em mim a nossa felicidade.


sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Com o tempo aprendi...

 Que o outono não são,
Apenas árvores despidas.
Que o Outono não são,
Sempre gestos de despedidas.

Que os passos é que vão fazendo,
Os caminhos do nosso longo viver.
E as lágrimas que vamos escondendo,
Nem por isso nos deixam de doer.

Com o passar dos dos anos aprendi,
Que o tempo não é um passageiro.
Que ele por nós sempre estará aqui,
Como um amigo e fiel companheiro.

Que o universo é uma casa sem paredes,
E cada pessoa é um vizinho do lado.
Que o horizonte é um mar com redes, 
Onde o nosso olhar se prende maravilhado.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Post.it: Os nossos silêncios

Sou daquelas pessoas que tem sempre algo para dizer, algo para contar, não banalidades ou comentar sobre a vida dos outros. Mas sou faladora, gosto de falar, de contar os filmes que vi, artigos interessantes que li, coisas sobre novas descobertas tecnológicas e científicas. Só não me meto em discussões sobre política e religião, respeito a opinião de cada um, mesmo que tenham uma opinião diferente da minha.
Nessas alturas, prefiro calar-me por fora, porque por dentro, contínuo em longos debates a tentar perceber as diferenças.
Na realidade, tenho dificuldade em fazer silêncio, aquele silêncio em que não há nada sobre o que falar, sobre o que pensar, um vazio em que pairamos acima das coisas ou mergulhamos em nós e percebemos a insignificância das nossas lutas de opinião. Tento silenciar a mente, não desisto à primeira, insisto uma, dez vezes, há que parar, relaxar, descansar o corpo e a mente, apenas respirar e seguir nesse embalo.
Esquecer a pressa dos deveres, obrigações que nos impõem, que nos impomos ao ritmo inflexível do ponteiro do relógio.
Mais uma vez, regresso a mim, torno possível o impossível, calo-me. É então, nesse silêncio que encontro todas as palavras a esvoaçarem-me a cabeça como nuvens carregadas de acontecimentos ameaçando um deflagrar a qualquer momento. Inspiro e deixo o ar sair-me lentamente dos pulmões, como se fosse um cansaço milenar.
As palavras deixam de ter importância, na verdade era a importância que eu lhes dava, porque nunca a tiveram e, partem sem serem ditas, sem ganharem som.
Agora sim, há silêncio, mesmo que lá fora se ouçam as buzinas dos carros, as pessoas nos seus passos apressados, os toques de telemóvel quando tocam todos em simultâneo compondo um estranha sinfonia de falsos acordes.
Em mim há um silêncio temporal, como se o relógio tivesse feito um impasse de espera, talvez cansado das suas eternas badaladas. Há um silêncio existencial, como se a vida, também ela, parasse, sem ser uma morte nem um renascer, apenas um intervalo, sem sono, sem sonho, apenas o leve e sereno, existir.
Pouco a pouco a consciência devolve-nos à realidade e percebemos dela apenas a sua importância relativa, aquela que lhe damos. A pressa e o peso que lhe atribuímos. Claro que há prazos, assuntos por resolver, coisas para fazer, compromissos inadiáveis, etc., etc., tanto por fazer, tanto por dizer… Sim, é verdade, há tudo isso, mas também há o silêncio, a calma, o parar, a forma de o olhar. Está tudo em nós na forma como gerimos as nossas emoções, um lugar onde em segurança, nos encontramos, nos resolvemos, nos equilibramos e a forma como criamos os nossos momentos felizes de silêncio.


sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Post.it: Aquela praia deserta

Os meus olhos são de mar, confundem-se por vezes com o céu, dizem-me que chegam a escurecer nos dias tristes, quando a nostalgia se torna um barco e me navega. Era assim que começava a falar de si com a voz arrastada das recordações.
Mas eu, continuava, prefiro a segurança de um cais, digo que sou praia invés de mar, essa praia deserta onde cresci, onde cresceu o meu pai e toda uma geração que nos antecedeu. Nessa praia ainda encontro os maus passos; riem-se os amigos desta frase; “são passos novos, os velhos foram levados pelo mar”, dizem-me, mas eu, que vejo mais longe no horizonte, continuo a encontrar os meus passos juntos com os da minha mãe, quando fazíamos longos passeios, os das brincadeiras com os meus irmãos, outros mais adiante, caminham juntinhos, suspiro, sim, são os meus e os do Miguel, que há muito partiu para, outras praias…
E o farol, cada vez que venho até cá, abraço-o. É um amigo, confidente, um pilar da minha história, quantas vezes foi a minha força. Numa confiança que vem dos tempos de criança, de que só ele sabe o caminho, a resposta silenciosa para as minhas gritantes dúvidas.
O areal, sempre o areal onde pousam as gaivotas, já não fogem à minha chegada, desviam-se, dão-me um pouco do seu espaço, sabem que aquela também é a minha casa. 
Tudo isto, sou eu, o ADN de que sou feita, que me circula nas veias com células carregadas de memórias, de histórias que vivi, que conto,  reconto e invento para adormecer a alma que à noite se aconchega numa duna de sonho com um teto de luar sob o olhar luminoso do meu velho amigo farol.


segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Post.it: 1000 post'its

Sim,  verdade, já lá chegámos, no início, julgamos que seriam apenas uns quantos, que as palavras se esgotariam. Que cresceria o silêncio, que ficaríamos por aqui, em busca de outras formas de vos contarmos, quiçá de vos encantarmos por entre as linhas, aquelas que querem dizer muito mais do que dizemos.
Mas as palavras sendo as mesmas, surgiam diferentes, e inesgotáveis, assim, chegámos às mil mensagens, mil formas de falarmos de nós, de deixarmos algo em vós. Mil sinónimos de emoções, mil milhões do bater do coração. Mil linhas, não,  muitas mais. Mil sonhos entre os sonhados e os por sonhar. Mil vitórias, outros tantos fracassos. Mil lágrimas, que espero tenhamos secado, mil sorrisos, que espero, tenhamos provocado, mil dores, que desejo, termos atenuado.
Mil momentos, instantes, pedacinhos de vida, da nossa, da vossa que ficaram aqui presos na “rede” web, mas soltas no espaço. Livres para chegar onde de outra forma nunca chegaríamos. Saímos da nossa “gaveta” da nossa casa, do nosso bairro, do nosso país, do nosso mundo, viajámos pelo vosso universo.
Nas mais variadas formas da prosa e do verso. Contámos a nossa história, escrevemos a vossa história. Relatámos os nossos dias, fomos a vossa fantasia. 
E depois de termos ido tão longe, queríamos apenas chegar tão perto, a ti. A cada um de vós que nos deixou entrar no vosso coração e abraçá-lo. Estamos aqui não pela quantidade de palavras, não pela dimensão de cada post.it. Estamos aqui porque queremos estar convosco. Estaremos aqui, enquanto quiserem estar connosco, porque são vocês que nos inspiram, para quem sabe, mais mil post.its.


sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Post.it: Coisa de avó

Já temos um bom bocado de história. Já temos o que contar, já temos o que recordar. Já temos pedaços de tempo, ondas de mar, estrelas do céu. Já apagámos velas, já celebrámos, já contámos as passas no início de cada  ano, é disso que se faz a vida, dessas pequenas/grandes coisas que nos preenchem os dias, os meses e aos poucos, os anos.
Por vezes esquecemos-nos dos anos, outras vezes apenas tentamos esquecer, fingimos que não nos lembramos, recusamos celebrá-los, não por estarmos de mal com a vida mas porque eles nos lembram a nossa finitude.
No entanto, é ela que nos ensina a valorizar a infinitude de momentos que podemos viver, partilhar, oferecer, construir.
Recordações, tantas, vão crescendo em carinho, diminuindo em detalhes. Sinto-me por vezes como um quadro que de tanto ser vislumbrado pelo sol vai perdendo a cor, os traços, os contornos tornam-se imprecisos.
Está velho e feio, diz a minha neta sem aquela malicia de quem se alheia de tudo o que não tem valor. Afago-lhe o rosto de menina ainda na tenra idade, “está igual a mim, também estou velha e feia”.
Com a mesma franqueza com que falou do quadro, “não Vó, tu és linda…, hesita, percebendo o peso das palavras, o quanto elas podem doer em corações frágeis, “bem, já és velha, mas… de uma maneira boa”.
Agradeço-lhe a “mentira”, que talvez não o seja, totalmente, quem ama vê com os olhos do coração. Por isso é verdade, para ela, sou linda.
Olho-me no espelho, uma amigo que me olha sem complacência, que me revela o que sou, com a verdade mais crua. Quem ali está sou eu e cada retalho do meu destino, rugas que escrevem no rosto caminhos por onde andei.
Aquela ruga nos cantos dos lábios, nasceu do sorriso por cada vez que olhava para os meus filhos. Aquela outra, mais profunda, perto dos olhos, lembro-me dela, surgiu no dia em que o meu companheiro de décadas partiu.
Outras muitas outras, umas de alegria ou de tristeza, talvez um dia as esqueça, mas elas vão estar sempre ali, para me contar a história do que fui, do que sou. 
Como dizia uma amiga, “a beleza não desaparece, com a idade, ela sai do rosto para se esconder no coração”.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Post.it: Sozinhos

Sozinha sou uma pétala,
Contigo seremos a flor.
Sozinha sou um grão de areia,
Contigo somos uma praia.
Sozinha sou uma gota,
Contigo somos um oceano.
Sozinha sou a solidão,
Contigo somos a humanidade.
Sozinha sou um passo,
Contigo somos o caminho.
Sozinha sou uma letra,
Contigo somos um livro.
Sozinha sou uma ilha,
Contigo somos o mundo.
Sozinha não sou nada,
Contigo somos o universo.
Somos o que somos,
A luz ou a escuridão.
Mas pouco nós somos,
Se formos um só coração.


sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Post.it: Santos

Há santos no altar, onde os olhos se colocam em oração. Mas há tantos outros que lá não estão e que nos esquecemos de olhar e de lhes agradecer o bem que fazem. Gente anónima, que passa quase discreta, que passa por nós e se nada mais tiver para nos dar, deixa-nos um sorriso. Nós que nos habituamos a rostos carrancudos cujo olhar foge apressado, aquele sorriso, aquele olhar mergulhado no nosso, surpreende-nos. Talvez não façam grandes milagres mas é nos pequenos que está a revelação da sua virtude.
Todos precisamos de “milagres”, não precisam de ser grandiosos, mas por vezes até os mais simples e aparentemente frugais, são o que necessitamos, são eles que nos “salvam” de ir por caminhos errados, que nos erguem, dos que estão presentes quando deles necessitamos dos seus milagres.
São milagres como o da amizade que ampara, da companhia que afasta a solidão, o milagre da generosidade que apoia quem mais precisa, o milagre de quem cuida dos outros,  o milagre da partilha em que não dá o que tem mas o que é como pessoa. Celebrou-se ontem o dia de Todos os Santos, dos que se imortalizaram e dos que passam ao nosso lado e nos abençoam com a sua existência.