segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Era uma vez: Tempestade

As nuvens carregadas e cinzentas e o vento que faz remoinhos e dobra as pequenas árvores da rua estreita e empedrada, anunciam tempestade. Deixo-me ficar à janela presa pelo movimento e pelos rasgões de luz que, de longe a longe, iluminam o céu. O ribombar é ainda tardio e longínquo. A chuva começa a cair com pingos fortes e grossos e rapidamente se transforma em aguaceiro intenso. Num instante, a água enche as bermas e inunda a calçada, formando um pequeno rio que escorre cada vez com mais força e ameaça galgar o passeio. O som da água a cair e a correr rua abaixo parece música que nasce do seu movimento e se apega ao ouvido, colando-me os olhos à janela. Olho mais longe, para onde a rua começa e, recortada na luz do relâmpago ainda silencioso, desenha-se a figura de alguém que caminha devagar e tranquilamente, como se estivesse bom tempo. Fico presa ao seu caminhar e, à medida que se aproxima, vejo que é uma criança, um rapazinho quase franzino que enfrenta a rua de olhar erguido e parece dizer à chuva e ao vento que nada podem contra a sua camisola molhada e os seus pés descalços. Sim, pés descalços! Os ténis vêm na mão esquerda.
O meu coração preocupa-se e espero que chegue à frente da minha janela para o chamar e lhe dizer que saia da chuva e do frio, que fuja da trovoada cada vez mais próxima e ameaçadora. Mas não consigo dizer nada. O seu passo é seguro e firme, o seu olhar está repleto de certeza e decisão, a sua atitude é a de alguém que sabe o que quer e aonde vai.
Passa por mim. Pára e volta-se para a janela. Olha-me nos olhos. Um olhar límpido e seguro que penetra, questiona e dá paz. A preocupação abandona-me e desisto de o convidar a entrar. É ele que me diz só com os olhos: “Vem! O conforto não é tudo! Há tanto para descobrir e conquistar! É um aguaceiro e uma trovoada que te vão impedir?” O olhar é uma luz que ilumina sem encandear e descubro nela a força e a vontade de caminhar, construir e viver. Nada, nem chuva, nem vento ou tempestade o demoverão ou impedirão de ir e procurar e alcançar.
Fico sem palavras, presa da força e da certeza daquele olhar que já não me parece real e é a única luz na rua que, de repente, ficou escura e quase assustadora. Ele não espera por mim. Sorri, como se dissesse “não tenho frio nem medo e a chuva não molha mais que o corpo”. Faz um gesto de adeus e continua rua abaixo, em direcção à sua certeza. Desaparece na curva, com os pés nus no riacho que continua aumentar e já inunda o passeio. A trovoada está agora mesmo por cima de mim. E eu não sei se foi verdade o que vi ou apenas imaginação. Mas sei que a tempestade deixou de ser desculpa para temer. Afinal, há quem a enfrente, quem não desista de caminhar e viver mesmo no meio dela. A rua iluminou-se e voltou a desaparecer na escuridão e eu já não tive medo.

3 comentários:

  1. Anónimo11.10.10

    Narrativa que faz pensar. Já enfrentei algumas tempestades e fugi a outras tantas. Vale mais enfrentar. Valente rapazinho!

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  2. Anónimo11.10.10

    Pois eu tenho medo da tempestade que ameaça Portugal. Tenho medo porque não depende de mim lutar contra ela e quem vai no leme não tem grandeza nem força.
    Continuem, Olhares e Sonhos, a dar-nos algum ânimo com as vossas ideias.

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  3. Anónimo12.10.10

    Uma coisa aprendi com a vida, depois da tempestade vem a bonança ou como diz a nossa amiga comum. Onde há crise há esperança.

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