quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Era uma vez: A viagem de Alice

Chegava sempre sem avisar e trazia presentes para todos, sem nunca esquecer ninguém. A sua figura alta e bem constituída parecia encher o pequeno apartamento com vista para a rua dos eléctricos, que passavam de longe a longe, num monólogo lânguido e comprido que nunca acabava. Sentia-se o cheiro a maresia, mas o novo prédio, comprido e alto, tapara por completo a visão do amplo estuário sempre animado pelo movimento de navios que chegavam e partiam, num vaivém de passagem e ânsia de outros mares.
Ele viera num desses navios e a sua vida era como a deles, sem cais fixo de ancoragem e sem amarras que o segurassem por muito tempo a terra firme. Mas regressava sempre, duas ou três vezes no ano, para abraçar a irmã e mimar os sobrinhos, cujos corações eram a sua única morada fixa. Os três miúdos viam nele o tio do mundo que lhes enchia o coração de novidades e sonhos e a casa de sinais e testemunhos de que, para lá do prédio alto, havia mais vida e mais gente. A pequena Alice era a que mais se apegara ao tio. Criara a ideia de que, um dia, haveria de partir com ele e, na preparação dessa viagem, passava horas a observar os postais e a imaginar vidas associadas às pequenas pedras exóticas, às estatuetas africanas, à palmeira anã da varanda, às peças de porcelana oriental, aos dois barquitos talhados em osso de baleia e a tantos outros presentes que enchiam a casa. Às vezes, até lhe parecia que o seu pequeno coração de oito anos sentia saudades desses longínquos lugares de que só ouvira falar. Queria partir, fugir do “monstro” de doze andares que a impedia de ver o rio a entrar no mar.
Agora, à distância de vinte anos, lembrava-se desses momentos e de como eles haviam influenciado a sua vida. Recordou o último regresso do tio que, dessa vez, chegara pelo fim da tarde e se sentara logo depois de os abraçar e antes de distribuir os presentes. O coração de Alice ficara triste sem que ela percebesse por quê.
– Desta vez, vou ficar mais tempo. Têm lugar para mim?
Um coro de vozes entusiasmadas, de palmas e saltos disse-lhe que havia sempre lugar para ele, em casa e no coração. Só ela ficara muda e queda. Entristecera-se por adivinhar que aquele navio já não ansiava pelo mar e talvez não voltasse a partir. Abraçou o tio e perguntou:
– Estás cansado de viajar ou já viste o mundo todo?
– Não, querida Alice, ainda não vi o mundo todo porque ele está sempre a mudar. Só tenho de ancorar por mais tempo que o habitual”.
– Não voltas a partir?
– Partirei, em breve. E verei um novo mundo que nunca vi e uma nova luz que muitos dizem que está para lá de todos os mares.
Os irmãos entusiasmaram-se com essa ideia. Só Alice compreendeu e, abraçando o tio, contou-lhe o seu segredo de imaginação e prometeu:
– Eu vou ver o mundo por ti e conto-te tudo, tudo. Não fiques triste.
E cumprira a sua promessa. Fizera-se mulher e partira. Vira o mundo com os olhos dela e um pouco com os do tio.
Mas, nas suas viagens e experiências, acabara por descobrir que o mundo não estava lá fora nem para além do mar. Encontrava-se ali, no seu coração; nos riscos que corria ao confiar em alguém, mais do que nos que enfrentara na floresta tropical; na alegria de conhecer quem ama e deixar-se encontrar, mais do que no encontro com gente de outros lugares; no desejo de viver e amar, mais do que na satisfação de traçar rotas e cruzar os mares.
Fora preciso partir e correr mundo para descobrir que, afinal, viajar é viver, ainda que não se saia do mesmo lugar. E viver é mais do que partir e regressar, é permanecer e sentir, é desejar fazer parte de alguém e deixar-se pertencer. Viver é chegar e ficar.

3 comentários:

  1. Anónimo13.10.10

    Pura e simplesmente lindo!

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  2. Anónimo13.10.10

    Gosto dos teus contos, viagens interiores e sensações. Bjs

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  3. Anónimo13.10.10

    Gostei. Bem escrito, bem pensado e sempre com um fundo de verdade: viajar e viver são uma e a mesma coisa.
    Fico à espera da próxima. Estou a ficar viciado nas tuas histórias e nos post.it de olhares! Continuem.

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