sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Era uma vez: Uma varanda de ver mundo (8)

Parque do Povo - São Paulo, Brasil
Nessa tarde, João quis concentrar-se nas páginas do livro de História. Não conseguiu. Tentou o de Geografia e, depois, o de Ciências Naturais. Não foi capaz. Resolveu dedicar-se aos exercícios de Matemática e fez alguns, mas não acertou no resultado de nenhum. Pôs as lições de parte e tentou fazer passar o tempo mais depressa, procurando na Internet algum relato de uma experiência semelhante à sua. Encontrou várias descrições mas todas do domínio da ficção.
Foi para a varanda mais cedo que o habitual e ficou a olhar o parque no seu esplendor verde, salteado de tons de castanho, rosa e dourado que se derramavam do arvoredo e ficavam espalhados pelo chão, ou subiam pelo ar em remoinhos desinquietos de folhas a querer reaver a vida que se lhes  esgotava ao sol ainda quente da tarde outonal.
Os olhos de João ficaram presos no voltear do bando de pássaros que cruzava os céus do parque numa azáfama de voos, ora apressados ora preguiçosos, e tentava adivinhar o significado dos chilreados que trocavam entre si. Imaginou-se parte do bando, a rasgar o espaço aberto do vasto céu azul. Fechou os olhos e deixou-se embalar pela sensação de leveza e de liberdade, que mesmo na imaginação parecia maravilhosa, saboreando o quentinho do sol e a suavidade da leve brisa que trazia até si o cheiro da terra regada e da relva cortada nessa manhã. E começou a sentir que em casa, na rua e no parque tudo se aquietou e silenciou, como se a realidade adquirisse outro andamento e outra vida com outro significado e outras possibilidades e novos horizontes. Do silêncio e da quietude, a pouco e pouco, foram surgindo vozes cada vez mais nítidas, vozes novas e diferentes, em palavras desconhecidas – grasnadas, latidas, miadas, chirleadas, palradas, salteadas, e até sibiladas e fugidias – palavras que João nunca tinha ouvido nem imaginado, mas que entendia perfeitamente. Todas falavam de coisas simples da vida no parque, do tempo, da estação, dos humanos, do sol, do vento, do mar longínquo e de notícias de amigos e parentes de outros lugares distantes. João ficou pasmado ao ouvir todas aquelas vozes, tão desconhecidas como familiares. “Teria adormecido? Estaria a sonhar?” Não. Estava bem acordado e até já abrira os olhos e se levantara.
“Eu estou em pé!? Como?! Como é que eu estou em pé?!”
Agitado, olhou em redor e prestou maior atenção às vozes e ruídos que chegavam até si. Só se ouvia a vida no parque e, para seu espanto, apercebeu-se de que todas as vozes falavam de algo inédito que estava prestes a acontecer e que mobilizava a atenção geral. Ainda confuso e emocionado, concluiu que tudo estava relacionado – as vozes que ouvia, as pernas que já o sustinham e o assunto da conversa de todas as vozes. Mas só pensava e dizia “Não pode ser! Não pode ser!” “Mas é. Eu estou acordado! E estou em pé! E oiço o parque!” “Mas não pode ser! Como é que pode ser?”
“Olá! Estás a ouvir? Todo o parque espera pelo teu primeiro voo!”
João sobressaltou-se. Não tinha dado pela chegada do rouxinol.
“O quê? É de mim que falam? Explica-me o que está a acontecer!”
“Falam de ti, pois claro! Querem assistir ao teu primeiro voo.”
João quis dizer: “eu não posso voar”, mas foram outras as palavras que a sua boca proferiu: “Verás que não te deixo ficar mal!”
“Assim é que se fala!”
Sem perceber como, João convenceu-se e acreditou que ia voar! Afastando o medo, trepou para o parapeito da varanda e abriu os braços. Para seu espanto, já não eram braços, eram asas, asas grandes, largas e com belas penas em tons matizados de branco pérola, dourado pelo sol da tarde.
“É assim mesmo! Só tens de respirar fundo, encher o peito de ar e posicionar as asas de modo a que o vento as encha e te leve com ele.”
“Só isso?!”
“Isso é só o princípio. Depois, quando estiveres no ar, deves olhar para o horizonte e sentir as correntes de ar. Quando são ascendentes ajudam-te a subir. Se quiseres descer, procura o ar que vem para baixo ou mergulha e inclina as asas na direcção do chão. É instintivo. Com a prática, vais apanhando o jeito e voando cada vez melhor.”
João deixou de sentir qualquer receio e confiou no pequeno amigo. Estendeu completamente as belas asas e deixou-se apanhar pela brisa forte que vinha a subir, quando esta lhe gritou “É agora! Vamos!”
Sentiu-se um pouco tonto com a subida, mas dentro dele cresceu a confiança e nasceu uma imensa alegria que explodiram num grito de êxtase e vitória, ao mesmo tempo que palavras de admiração e incentivo subiam até si, como se todo o parque tivesse levantado voo e rasgasse o céu ao ritmo das suas asas.
“Estou a voar! Estou a voar!” gritou para o rouxinol que batia as asas a seu lado.
“Sobe só mais um pouco. Mais acima há uma corrente plana que nos vai levar até ao outro lado do parque.”
João seguiu o pequeno amigo e sobrevoou, extasiado, a mancha verde e dourada que, vista de cima, parecia muito menor mas muito mais bonita e até brilhante. Olhou para nascente e avistou a sua varanda onde a cadeira de rodas parecia pequenina, pequenina e vazia! Libertara-se. Finalmente!
……………...
(Continua)
……………...

1 comentário:

  1. Anónimo14.1.11

    Minha amiga esta semana foi especial com a sua presença mais frequente no blog. Hoje voei com o João. A ficção tem esta coisa boa de tudo ser possível. Para amargura basta a realidade. Um abraço. Bem haja. Luiz Vaz

    ResponderEliminar