segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Era uma vez: Uma varanda de ver mundo (9)

Parque da Liberdade - Sintra
João Voltou a observar o parque. Tudo parecia pequeno mas, ao mesmo tempo, tão seu conhecido e tão próximo, como se fizesse parte de si próprio e formassem um todo, ele as árvores, os arbustos, a relva, as flores, os animais – insectos, aves, pequenos roedores e mamíferos e até os répteis e peixes do lago. Mesmo as pessoas que passeavam no parque, com os seus carrinhos de bebé, com as suas crianças, com os seus cães, com as suas preocupações e com as suas esperanças e alegrias, pareciam fazer parte desse todo gigante, como um organismo vivo que unia tudo em si e fazia com que tudo tivesse sentido e significado.
Pairando sobre o parque, João sentiu o coração cheio, confortável e em paz, como se tivesse deixado em terra tudo o que pesava: a tristeza de não poder andar, a incerteza que essa limitação lançava sobre o seu futuro: o medo de ficar só, de que ninguém conseguisse amá-lo; o receio de não poder realizar-se profissionalmente; a angústia de se imaginar continuamente dependente e a saudade do tempo em que não tinha essas preocupações e a vida se lhe apresentava sorridente e lhe parecia fácil e esperançosa. Ali em cima, voando livremente e sem esforço, voltou a sentir-se leve e confiante no futuro, com fé na vida e em si próprio, capaz de acreditar no milagre do amor e da felicidade.
O rouxinol mantinha-se a seu lado e observou a transformação do rosto e do coração do amigo. “Vês, estás a conseguir e logo à primeira! Acreditas, agora, que podes voar?!”
“Não sei se acredito, mas estou a voar e é maravilhoso! Conheço tudo quanto vejo, mas parece-me tão diferente e, ao mesmo tempo, muito mais próximo de mim do que alguma vez esteve!”
“Agora fazes parte do parque. Todos te conhecem e gostam de ti. Não os ouves? Continuam a falar de ti e estão felizes porque conseguiste voar!”
João reparou que, agora, até as árvores e as flores e a relva falavam dele e entregavam ao vento o seu aroma para que ele o pudesse sentir lá em cima.
“Nunca pensei que reparassem em mim ou que dessem, sequer, pela minha existência.”
“Toma atenção. Baixa um pouco a asa esquerda e inclina a cabeça. Vamos começar a curvar para inverter o sentido de voo.”
João obedeceu e foi como se toda a vida tivesse voado – a curva saiu na perfeição. O ar ascendente elevou-os um pouco e, depois, deixaram-se ficar a planar preguiçosamente. O rouxinol retomou a conversa:
“Todos repararam em ti naquela tarde em que salvaste aquela miúda de ser atropelada pelo louco que resolveu fazer MotoCross nas veredas do parque. Ficámos preocupados quando desapareceste e aliviados quando começámos a ver-te na varanda e a aparecer aos domingos no parque. Mas vinhas diferente, mais triste, sem o sorriso maroto e descontraído que costumavas ter.”
“Tudo mudou na minha vida. Parece que, de repente, deixei de ser criança e me tornei adulto e velho. Não fazes ideia do que senti. Imagina só que deixavas de poder voar!”
“Deve ter sido muito duro para ti. Mas imagina só que tinhas ficado a olhar aquele inconsciente a atropelar a miúda! Não poderias viver com essa lembrança, pois não!?”
“Acho que não!” João não disse ao amigo, mas pensou para si próprio que, mesmo conhecendo as consequências, voltaria a proteger a Rosinha, sobretudo agora que a conhecia.
“A vida é um surpresa permanente, João. Até das coisas que parecem negativas, à primeira vista, ou que são mesmos más, pode surgir algo de positivo ou até mesmo muito bom. Tens de acreditar que a vida vale sempre a pena e que, seja em que circunstância for, podes acreditar que é possível ser feliz.”
“A partir de hoje, acredito seja no que for! Então, não estou a voar!? Olha só para mim!”
João volteou no ar. Ganhou balanço e mergulhou a pique, de asas coladas ao corpo, até quase atingir a copa das árvores mais altas. Aí, levantou a cabeça, abriu as asas, curvou o corpo e começou a subir cada vez mais rápidamente em direcção ao céu, de mente e coração abertos, com um sorriso límpido e puro nos lábios, nascido lá dentro, no mais íntimo da sua alma. E o pequeno rouxinol percebeu que o João que vinha a subir em sua direcção era outro, voltara a ser o adolescente confiante e alegre que conhecera meses atrás. Aprendera a voar e levantara voo!

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(Continua)
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5 comentários:

  1. Anónimo17.1.11

    Estou a gostar de sua história e da forma como está a contando-a, com sensibilidade e muito optimismo. Vinha-me interogando sobre o facto que determinara a incapacidade do menino e ela surge sem aviso, naturalmente, como se fosse natural dar a vida e o andar por uma criança que não se conhece e mais ainda num mundo em que cada um pensa antes de tudo em si mesmo! Deveria ser tão natural como foi foi para o João que nem se lamenta pelo facto, apenas sofre porque também é normal sofrer.
    A descrição que faz dos sentimentos e dos voos é muito bonita. Estou aguardando por mais. Soraia

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  2. Anónimo17.1.11

    Hoje a história levantou voo, amiga. Gostei muito. É tão bom quando encontramos quem saiba voar e nos ensina! Bem hajas. MJ

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  3. Anónimo17.1.11

    Quem escreve esta história? Gosto da escrita e da ideia do protagonista ser uma pessoa com deficiência. Nunca ninguém faz dessas pessoas heróis de histórias. Quando muito aparecem como personagens secundárias. Espero que não venha a acontecer um milagre pois a vida tem de ser vivida tal como se apresenta. Vou acompanhar. Gosto da escrita leve e fresca.

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  4. Anónimo17.1.11

    Boa noite minha amiga. O sonho continuou hoje. Quem me dera voar e que o João pudesse voar para sempre. Hoje deu sentido à sua condição. Infelizmente a maiora das situações não se deve a acções de altruísmo mas sim a doenças e a acidentes de trabalho e de viação e muitos por causa da irresponsabilidade ao volante. O meu caso foi um desses. Era jovem e pensava que nada poderia acontecer-me que tinha o controlo de tudo. Aprendi da pior forma. O rouxinol tem razão é sempre possível voar mas assim é mais dificil. Espero pelo próximo voo com a minha amiga. Os meus cumprimentos. Luiz Vaz

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  5. Anónimo18.1.11

    Acabei de ler toda a história desta varanda de ver o mundo e gostei muito da escrita e do tema. Descrições bem adjectivadas sem serem exaustivas, numa linguagem bonita e rica sem ser pretensiosa, que permitem imaginar o espaço e os movimentos e dão vida à narrativa. Tem fôlego. O tema é feliz e pertinente. Estou curioso para saber como se desenrola o futuro do João. Meus cumprimentos desde Curitiba, Brasil.

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