terça-feira, 23 de novembro de 2010

Post.it: Toda a gente é pessoa

Tem nome de nobreza, mostra orgulhoso exibindo o bilhete de identidade,  mas não é isso que lhe enche a barriga. Tem um corpo franzino, olhar travesso e um andar ladino, nascido e crescido pelos becos de Lisboa. Vive sem rumo pelas ruas da cidade, fazendo aqui e ali algum biscate que lhe pague um abrigo e algo que alimente o estômago. Recusa o rótulo de sem-abrigo, afinal tem um tecto, não dorme na rua. Exibe com orgulho a roupa que lhe deram em 2ª mão,  mostra-a com vaidade, está limpa, para ele é como se fosse nova, como se acabasse de a estrear. Penteia os cabelos ondulantes com os dedos, o rosto enrugado, queimado do sol e do frio impossibilita que se lhe adivinhe a idade.
Zé Manel, como se apresenta, um sem-abrigo com tecto para o cobrir nas noites frias e chuvosas. Não é como os outros, apregoa. É uma pessoa, refere. "E toda a gente é pessoa".
Não gosta de misturas, tem o seu brio, o seu orgulho e afirma com altivez:
- Posso não ter dinheiro para comer, mas tenho o meu quarto pago todos os meses!
Todos os meses no dia certo, batia à minha porta. Quando esta se abria. lá estava o Zé Manel, alfacinha de gema, de sorriso rasgado, dava um retoque no cabelo, ensaiava uns passos de dança e um jeito meio gingão. Trazia um ar de festa, pedia-me um pacote de leite, nada mais. Por vezes o seu ar de festa transbordava de demasiada festividade. Os olhos brilhantes e o hálito a álcool não enganavam, o Zé Manel andara a festejar pela noite fora.
Mas será que tinha algo para festejar? Afinal era um sem-abrigo, um anónimo na multidão. Mas era uma pessoa, não se cansava de repetir.
Um dia desapareceu, ninguém o procurou, ninguém sentiu a sua ausência. Bem, talvez o quarto, agora vazio, o seu tecto, o seu orgulho de quatro paredes, aquilo que lhe permitia sentir que não era mais um sem-abrigo perdido pelas ruas da cidade.
Zé Manel, era uma pessoa, uma vida de pobreza, com apelido de nobreza...

3 comentários:

  1. Anónimo23.11.10

    Gostei da tua história. É bom que de vez em quando se lembre às pessoas que os sem-abrigo tb são pessoas. Pessoas que entraram nesse circuito, sabe-se lá com que vivência. Obrigado por lembrares e falares desses que são "Pessoas"

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  2. Anónimo23.11.10

    Que descrição engraçada e humana do "Zé Manel". Estou certa que muitos deles se reviram nesta história. Mto giro. Beijocas

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  3. Anónimo23.11.10

    Gosto da sua sensibilidade, da forma como expõe os assuntos. Aprecio a sua escrita, ligeira, mesmo quando os temas são mais sérios, deixa sempre uma tonalidade de harmonia. Estou a gostar do seu blog. André

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