quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Era uma vez: Sementes de tesouros

Sentada em frente à máquina de escrever, Beatriz organizava as ideias que iriam encher a brancura das páginas. Quando se preparava para escrever uma nova história, já construída mentalmente, vinha-lhe sempre à memória a sua infância, época em que toda a sua fantasia fora criada e guardada como um valioso tesouro, de onde foram saindo todas as sementes da sua escrita.
Em criança, passava horas no jardim das traseiras, na penumbra sombria criada pelas árvores centenárias que já ali se encontravam quando o pequeno palacete fora construído, numa alameda relativamente próxima da pequena cidade, mas suficientemente afastada para garantir silêncio e isolamento – duas exigências do seu avô paterno, homem de posses, que o idealizara. Beatriz habituara-se ao ambiente calmo e silencioso da casa e do jardim. Conhecia pouca gente. A doença da mãe e o mistério que envolvia o seu nascimento eram os motivos do isolamento social da família. Não tinha amigos, apenas sabia que existiam pelos livros que lia compulsivamente. Aprendera a ler com apenas cinco anos, quando a mãe ainda tinha gosto na sua companhia. Ensinara-a a ler e semeara nela a vontade de viver e o hábito de sonhar. Mas, um dia, adoeceu e esqueceu-se da filha. Descobriu mais tarde que a doença não era do corpo. Fora a alma que perdera a alegria e a vontade de viver. Ninguém lhe explicava as razões de tal doença. Os avós, a ama e até a empregada, que vinha todos os dias da cidade, zangavam-se sempre que se atrevia a falar no assunto. Adivinhava a relação com o seu nascimento pela frieza com que os avós a tratavam – como se fosse a culpada da infelicidade da filha. Desistira de os questionar sobre o pai, tal era a fúria que lia no olhar do avô e a dor que se espelhava no da avó, quando respondiam contidamente: “- Não são assuntos para a tua idade. Contenta-te com a vida boa que tens!”
Restavam-lhe as árvores do jardim. Nomeara cada uma e fizera delas suas amigas. Lia-lhes os livros que o avô nunca deixara de lhe oferecer regularmente. Muitos eram de histórias, outros de História, de Ciências Naturais, Física, Química ou Geografia – matérias que o avô achava que ela podia aprender sozinha. Para a Matemática, a Literatura, a Música e as línguas estrangeiras, vinha, duas manhãs por semana, uma professora pouco faladora que se cingia aos assuntos de estudo.
Estava sozinha e o jardim era o seu mundo, onde permanecia e onde a sua mente viajava pelos oceanos e continentes da imaginação. Nessas viagens, descobria tesouros a que dava vida nas páginas dos cadernos que nunca eram suficientemente grandes para tantas palavras, tantas ideias, tantas histórias e tantos desenhos! Guardava-os ciosamente numa caixa que escondera no tronco da velha tília, guardiã do seu tesouro e confidente das lágrimas, dos risos, dos sonhos e das esperanças. Beatriz fora descobrindo a beleza da amizade e do amor através dos livros e vivia esses sentimentos nas viagens interiores, onde descobria e criava mundos que só ela conhecia e que lhe ofereciam o que a vida real lhe negava.
Sabia agora que esses mundos e tesouros, só seus, lhe tinham permitido sobreviver e vencer a solidão, transportando-a em segurança para a vida adulta, onde veio a descobrir que todo o mistério não passara de preconceito – um amor proibido, uma mãe solteira, uma filha escondida, um pai desconhecido que nunca encontrara – que, por sorte ou providência, se transformara em imaginação, riqueza e dom que partilhava com os seus jovens leitores. Talvez, algures, estivesse algum tão sozinho como ela fora. Era para esse que contava as suas histórias, escondendo nelas sementes de tesouros, para serem descobertas e semeadas.

2 comentários:

  1. Anónimo24.11.10

    Já tinha saudades do Era uma vez. Obrigado por mais uma história com final feliz e com conteúdo. As adversidades da vida são responsáveis pelo aparecimento de muitos génios de todas as áreas porque obrigam a inventar e a descobrir formas de sair dos problemas. Essas pessoas mostram-nos como são vãs as queixinhas e lamúrias de quem atira para os outros a culpa de nunca chegarem a lado nenhum na vida.
    Fico à espera de mais histórias bem escritas e uteis.

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  2. Anónimo24.11.10

    Excelente conto. Com uma escrita simples mas com uma grandeza de alma. Gosto muito das suas histórias Sonhos.

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