quarta-feira, 6 de julho de 2011

Post.it: Chamam-lhe velha

Chamam-lhe velha, afastam-na como se tivesse alguma doença contagiosa. Chamam-lhe farrapo e tratam-na como se fosse lixo. Ensinam as crianças a chamar-lhe “bruxa” e estas acreditam que é maléfica. Mas que pode aquele corpo carcomido pelo tempo, pela dor, pela mágoa, pela rua onde vive e pelo tecto de estrelas que lhe cobre o sono, fazer de mal?
Segue a rotina dos dias, levanta-se a custo, arruma os cartões que serviram de abrigo, limpa o chão que lhe serviu de leito. Não pode dormir até tarde, a polícia dá-lhe ordem para circular. Há que manter as aparências daquele bairro chique da capital. Caminha, qual caracol arrastando os seus parcos haveres. Protege-os como se fossem tesouros. Tesouros do seu passado, herança do que foi. De quando em vez,  balbucia, palavras que ninguém entende aos transeuntes que lhe lançam um olhar de desprezo, os mais preconceituosos dizem que são pragas. Inventam-lhe histórias:  que é chefe de gangues, que vive de esmolas mas tem grandes moradias. Inventam-lhe histórias, porque não conhecem a sua verdadeira história. No final da tarde senta-se num banco de jardim, a sua sala de estar, retira do saco uma carcaça rija, parte pedaços e saboreia como se fosse um manjar dos deuses, um pombo aproxima-se. É conhecida pelos gestos rudes, pela agressividade das palavras, adivinha-se que vai espantar rapidamente o pássaro. Olha-o indecisa por entre os cabelos em desalinho, a ave aproxima-se ganhando coragem, ela parte um pouco mais de pão, hesita,  lança-o devagar.
Chamam-lhe  velha, farrapo, tratam-na como se fosse lixo, uma pobre coitada, condescendem. Mas pobre que partilha a sua pobreza é certamente rico no coração.

7 comentários:

  1. Anónimo6.7.11

    Quantas vezes já me cruzei com estas realidades, demasiadas. Porque são demasiadas as vidas que passam por esta situação. Cruzei-me com elas durante 20 anos quando fui voluntária numa instituição de ajuda aos sem abrigos. Quantas histórias, quantos caminhos perdidos. Gostaria de lhas contar, porque não tenho o mesmo jeito que você para as escrever. Estou certa que tal como esta história teriam muito a ganhar com a sua sensibilidade. Componha mais quadros destes, pinte-os com as suas palavras. Um grande beijo, Adelaide

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  2. Anónimo6.7.11

    O preconceito e a insensibilidade tornam estas vidas ainda mais tristes. Mas sei que é assim, que muitos preferem virar a cara e julgar para não ajudarem. E no entanto são estas pessoas capazes de partilhar com os mais pobres o pouco que têm. Linda a narração desta triste e crua realidade. Bjs, Amália

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  3. Anónimo6.7.11

    Gostei muito de ler o teu post.it, retrato duma realidade que nos circunda mesmo quando lhe viramos o rosto e nos neguemos a ver. Ela existe, ela e muitas/os outros sem-abrigo. Pessoas que por motivos vários caíram na rua. Vícios, dependências, depressões, abandono. Situações difíceis de resolver, difíceis de “olhar” porque nos doem na alma. Bjs, Sandra B.

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  4. Anónimo6.7.11

    Um quadro humano, pelo seu olhar, sempre atento. Mas mais do que isso, a capacidade de mostrar o que viu, o que sentiu. Uma característica que aprecio na sua escrita, não é muito comum encontrar alguém que tenha a aptidão de transmitir esse olhar partilhado com o leitor para que este o possa sentir. Um abraço, Antero

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  5. Anónimo6.7.11

    Uma visão muito realista, contada com a tua habitual sensibilidade. Quase vi a “Velha”, quase ouvi nas suas lamúrias de infelicidade. Mas adorei a frase final, deixou-me sem palavras.

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  6. Anónimo6.7.11

    Há vidas que passam por nós, mal olhamos e se olhamos em segundos esquecemos de tão mergulhados que estamos em nós mesmos. Ainda bem que há pessoas que com o seu “olhar” nos fazem “ver”. Obrigado, Luís

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  7. Anónimo6.7.11

    Todo o texto é muito bonito, mas fiquei surpreendido com a conclusão, como se fosse retirada dum capítulo da Bíblia. Rui

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