quarta-feira, 20 de julho de 2011

Era uma vez: o "vagabundo"

Andava pelas ruas da pequena cidade, à beira-mar. Parecia ter sempre um destino certo, mas nunca ninguém o viu chegar a nenhum lugar concreto, pois caminhava, caminhava e raramente parava. Aparecera há pouco tempo na cidade e ninguém conseguira descobrir donde vinha nem ao que viera, muito menos dizer a sua idade ou conhecer o seu nome. Começaram a falar dele como o “vagabundo”, não só pelo seu caminhar incessante, mas também pelas suas roupas muito usadas e pelos sapatos gastos e sem atacadores. Apesar do seu aspecto limpo e do olhar lúcido, a alcunha pegou.
Quando ouviu falar dele, Joana sentiu-se diferente, como se algo novo tivesse nascido dentro dela. E desejou conhecê-lo. Sentia-se presa, como se tivesse caído num buraco da vida onde acabara por se refugiar segura, no seu trabalho e na sua casa. Queria mais, mas tinha medo e não sabia como alcançá-lo. Passou a olhar para todos os homens, na esperança de que algum fosse ele. Nesse fim de tarde, passeava na rua larga, à beira mar e viu-o, ao longe, a caminhar na praia com os pés na água. Soube que era ele Quis vê-lo cara a cara e desceu à praia. Transpôs o areal e começou a caminhar em direcção ao “vagabundo” também com os pés na água. Joana reparou na sombra que o acompanhava, muito alongada, devido ao sol já baixo, também em passo decidido e ritmado. Quando se encontrava já próxima, Joana ficou impressionada e parou.
A expressão do “vagabundo” era a de alguém que vivera desde sempre e transportava no coração e na mente recordações e saberes que ninguém mais guardava ou sequer adivinhava e o seu olhar parecia ter a idade do mundo e poder ver coisas que ninguém mais via. Mas, o corpo direito e quase esquelético, o rosto levantado e o andar firme davam a sensação de ser ainda jovem e de esperar tudo da vida e dos outros.
Ela ficou a olhá-lo, de coração inquieto Conheceria ele o lugar onde ela estava, as resposta que ela procurava? Poderia ele ajudá-la, acalmar nela a inquietação e o medo de descobrir a respostas para ela?
O homem aproximava-se sem alterar o ritmo do passo nem a direcção do olhar. Passou por Joana, que permaneceu parada, seguindo-o com o olhar e ainda a pensar se ele saberia responder-lhe e perguntando a si própria “será que não me viu ou apenas me ignorou?”
Como se tivesse ouvido a pergunta silenciosa, ele parou e voltou-se. Fixou o seu olhar no dela. Não disse nada. Olhou-a apenas, intensa e demoradamente. Foi como se lesse os seus pensamentos e compreendesse toda a inquietude que lhe ia na alma.
Com grande surpresa e um pouco assustada, Joana sentiu que o estranho se preparava para falar.
- Vi-te, obviamente, estavas mesmo à minha frente e não tiravas os olhos de mim.
A sua voz soou límpida e clara, macia e aconchegante, serena e cheia de uma força que também transparecia no olhar profundo, brilhante e meigo.
Joana não chegou a assustar-se. Pelo contrário, aquela voz serenou-a por dentro e ela sentiu-se como se tivesse chegado a um lugar conhecido, confortável e seguro.
- A inquietação e o medo que trazes contigo não vão desaparecer de um momento para outro e não sou eu nem ninguém que te vai ajudar a resolver ou a descobrir as respostas que procuras. Só tu o podes fazer.
Sem se dar conta, Joana quase gritou:
- Como?
- Com serenidade, vontade e esperança!
- E como as encontro?
- Dentro de ti e em algumas pessoas.
- Como tu?
- Como todos os que sabem ouvir o coração e criam pensamentos de verdade e paz. Esses sabem sempre onde buscar e que caminho seguir porque seguem a verdade do que são e do que sentem e agem de acordo com ela.
- Mas eu não sei qual é a minha verdade: o meu coração quer uma coisa e eu quero outra.
- O coração é sempre verdadeiro. A mente é mais habilidosa, sabe encontrar desculpas e explicações. A verdade está no coração – o que sentes é verdadeiro.
- Como sabes o que sinto?
- Porque estás inquieta e pensas que não sabes o que fazer. Mas o teu coração já to disse, tu é que não queres acreditar e refugias-te no teu silêncio, escondida da verdade que está dentro de ti.
- É mais seguro.
- Será? Só tu podes seguir o teu coração. Também podes ficar, calá-lo e lamentar para sempre não o teres seguido.
- Mas é tão longe onde ele me quer levar!
- Sim. Os outros são sempre longe! É preciso sair de nós e essa é uma viagem difícil de fazer!
- Tenho medo!
- Nunca tenhas medo do coração. Ele é verdadeiro.
- Segues sempre o teu coração?
- Sigo.
- Foi ele que te trouxe até aqui?
- Trouxe-me a ti.
- És um anjo?
- Segue a verdade do teu coração. Confia e terás a coragem de ir onde ele te quer levar.
Voltou-se e partiu.
Joana ficou imóvel a vê-lo desaparecer na praia deserta, com a sua sombra cada vez mais comprida e ténue. Estranhamente, sentiu-se tranquila e liberta.
Ninguém mais o viu na cidade e, mesmo sem saberem quem era, sentiram a falta do homem que parecia trazer a eternidade consigo. Ficou apenas a lembrança do seu contínuo caminhar e do seu olhar. No coração de Joana, ficou a paz daquele encontro e quem a conhecia descobriu nela uma nova luz. Por isso, ninguém estranhou quando fechou o consultório e partiu, dizendo que, do outro lado do mundo, “os outros esperavam por ela.”


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