sexta-feira, 19 de abril de 2013

Post.it: Um pretérito quase perfeito


Às vezes é preciso falar de nós, conjugando o pretérito perfeito. Lembrar as origens, a razão de sermos aquilo que somos, “porque só isso nos deixaram ser”, diz uma voz jovem num corpo de idade indefinida, num rosto queimado pelo sol, sombreado de noites mal dormidas, pelo seu Zé que anda no mar e o filho já lhe segue os passos, enquanto a miúda já lhe calça os chinelos de peixeira. “A escola? Eles lá querem saber da escola, e depois filhos de pescador e a peixeira nunca passam disso mesmo. Bem tentei convence-los a contrariar a sina mas não me deram ouvidos”.
Às vezes é preciso buscarmos nos outros a senda do que somos, por mais que queiramos não podemos alterar os nossos genes, fugir do destino que os nossos  bisavós, os nossos avós e os nossos pais nos escreveram no ADN da existência. Claro que desejava reescrever a minha história, afastar-me definitivamente deste caminho e deixar para os vindouros uma outra narrativa de vida, na liberdade de a escreverem sem influências geracionais.
Às vezes é preciso aceitar, deixar de nos rebelarmos, aprendermos a conviver com os traços, a semelhança da voz, apesar da dissonância de ideias, acabamos sempre por regressar às origens, porque “uma alma sem raízes é um papagaio papel à deriva no  vento” em busca de uma inexistente direcção.
Às vezes é preciso reconhecer e valorizar essa herança. “Tem os olhos da mãe, o nariz do pai, mas o feitiozinho, não se pode negar,  é o da avó”. “E essa costela algarvia que não a deixa calada um só instante? Um cansaço…”
 “Mas por outro lado contrapõe-se a costela alentejana numa indolência calorosa e uma paciência que ronda o infinito das planícies de trigo louro”. “Não te esqueças da influência marcante das raias fronteiriças, esse jeito espanhol que apanhou de ambos os lados da família, olha, tornou-a desenrascada”.
Sussurram assim as minhas “fadas madrinhas” agitando-me um futuro na ponta da “varinha de condão”
E assim fadada ao meu destino, num qb de quietude e inquietude, vejo os Zés partirem nas ondas da maré, as esposas peixeiras à espera do regresso no cais de cada madrugada e os filhos que trazem em cada molécula, marítimos vendavais  mas também maternais portos de abrigo.