sexta-feira, 25 de maio de 2012

Post.it: Os homens também choram


“Os homens também cuidam, os homens também choram, os homens também sofrem, os homens também amam”. Poderia ser este o mote de uma conversa, mas é simplesmente o desabafo de quem vive a sua história devagar.
Afinal, apreciava um bom debate de ideias, de gosto, uma conversa amena que por vezes aquecia e levava o debate argumentativo um pouco mais longe. Era um gosto que tinha desenvolvido com a sua companheira de uma vida em comum. Que o escutava impacientemente, com os olhos vibrantes de paixão pelas ideias que tentava desmontar. Hoje, diz com amargura na voz, não tem ninguém para o ouvir, que não tem ninguém com quem falar. Por vezes ainda tenta encetar um diálogo com a funcionária que lhe ajeita a roupa, que lhe passa um pente pelos poucos cabelos que teimam em despertar num total desalinho. Mas ela exibe-lhe um sorriso mecânico e afastas-e com a mesma pressa com que chegou, há muito trabalho para ser feito, “muitos velhotes para tratar” além disso, “não lhe pagam para os mimar”.
Os seus olhos mergulham no ecrã que está pendurado na parede. Preferia que fosse uma pintura de Cezzanne com as suas paisagens. Um Degas no seu tom de neblina onde o olhar pode encontrar aconchego, ou, porque não um Matisse vibrante de luz e de cor. Mas não é um quadro o que está pendurado na parede, é apenas um aparelho quase demoníaco de imagens em sobressalto, de sons gritantes que lhe ferem o sentido auditivo, aumentando a saudade de voltar a escutar um Ravel, Debussi ou Shubert, um sorriso desenha-se-lhe no rosto, recordando, “ela gostava de Chopin”, chorava quando ouvia os nocturnos, como se a sua memória navegasse para os longínquos  mares da memória. Começou a sentir-se excluído desse navegar. Então fechava-se no escritório e escrevia, poemas que nunca teve coragem de lhe oferecer. Certamente iria rir-se dos seus poemas, do amor que ainda acalentava no peito. Porque “os homens também amam”.
Lembra-se de quando começou a sentir o seu afastamento, quando se sentia uma sombra no seu olhar, quando ela começou a esquecer o seu nome e o passado em comum, chorou, porque “os homens também choram”.
Lembra-se quando começou a segurar-lhe o braço evitando-lhe alguma queda, porque “os homens também cuidam”.
Recorda-se quando ela partiu, ele partiu também. Ela para o céu, ele para um inferno de solidão. E sofreu, porque “os homens também sofrem”.
Está num lar que de lar apenas tem o nome. Não tem o calor que tinha o dela, não tem o seu sorriso, a doçura da sua voz. Não tem Monet, pintor que ela adorava. Não tem Chopin. Não a tem a ela…

8 comentários:

  1. Anónimo25.5.12

    Muito bonito este texto que nos ofereces, uma história que nos fala de solidão no seu quase final, mas também de uma vida preenchida de bons momentos. Um relato muito intenso, quase que vivido e sofrido, ao lado desse idoso, que amou, cuidou e sofreu com a partida da sua companheira de uma vida. Infelizmente, não nos é possível mudar o prosseguimento das coisas, por isso costumo aconselhar a que tirem o maior partido de cada momento que vivem e construam a possibilidade de uma melhor futuro. Bj. Sanda B.

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  2. Anónimo25.5.12

    É triste que as vidas decorram desta forma, que se tenha a beleza de um passado que nos vai fugindo e de um momento para o outro somos mais um velhote num lar hostil e frio. Para quem lá trabalha é apenas um trabalho, não um lar, uma família. Beijocas C.

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  3. Anónimo25.5.12

    Que pena este homem, que soube cuidar e amar, que sofre e chora e ainda ama, não ter um computador ligado à internet. Poderia visitar este site e sentir-se mais perto do seu amor, dos seus músicos e dos seus pintores, tocando com Olhares a essência da vida, pintada em palavras de tanta beleza e sensibilidade que faz sonhar, rir, chorar, sentir.
    Um princípio de romance que prende desde a primeira à última linha! Espera-se a continuação.

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  4. Anónimo25.5.12

    Admirável a forma como escreve, como faz de cada pequeno retalho, uma grande lição. Espero que muitos entendem, não só que os homens choram, amam, cuidam e sofrem. Mas também que é preciso viver o hoje antes de chegar ao amanhã arrependido do que não fez com medo de que não durasse. Um grande abraço, Antero

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  5. Anónimo25.5.12

    Felizmente teve uma vida feliz. É nisso que penso agora. Em construir a felicidade de um presente para não chegar ao futuro e não ter nada para recordar. Bjs A.

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  6. Anónimo25.5.12

    Senti com carinho e tristeza esta história. Porque conheço algumas parecidas. E pergunto-me se será um dia a minha. Num lar que como dizes de lar nada tem. Beijos Filomena

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  7. Anónimo25.5.12

    Quantas verdades nos contas tendo como pano de fundo a beleza da tua escrita.

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  8. Anónimo25.5.12

    Há muitas vidas assim, infelizmente. No entanto, é verdade os homem também choram. Alberto F.

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