segunda-feira, 28 de maio de 2018

Post.it: As letras

Tenho saudades do bico da esferográfica, do fio de tinta que deixava na folha branca, como se fosse um rasto que o olhar segue. De repente, uma subida, logo depois, uma curva e por fim uma rápida descida. Uma, depois outra e mais outra, surgem as letras, num movimento que quase se identifica a uma vertiginosa montanha-russa, tudo isto para que no papel surja desenhada a mais simples palavra.
Pouco importa o que ela diz, ou que história nos quer contar, porque a sua beleza, o seu requinte está na sinuosidade da forma, no emaranhado das suas linhas, que se unem num estreito abraço para logo a seguir se separarem e entenderem-se como raízes em busca de água, ou erguerem-se como ramos com fome de sol.
Pergunto-me que divino pintor criou a nobreza destes elos, que magistral autor lhe deu tão particular significado, que mestre criador lhe deu tão sublime sentido. Independentemente do seu conteúdo, independentemente do que ele encerra, o seu código, um segredo sempre disposto a revelar-se, que quer ser de todos para que cada um o tenha ao seu dispor e dele disponha para levar mais longe o que num passado longínquo foi imaginado pelo ser humano quando saiu da caverna e olhou para o universo, mudo de espanto, quis falar, mas o som das palavras não lhe fez jus, então, desenhou no chão caracteres, e chamou-lhes letras, casou-as com harmoniosos pares e surgiram as palavras, nenhuma quis faltar à festa, reunidas formaram frases, o texto nasceu e cresceu saindo do chão, fixando-se em esvoaçantes folhas. Foi preciso uni-las para não fugirem, cozer uma a uma para lhes dar um lar a que chamaram livro.
Obra que folheamos,  por vezes sem grande acuidade, sem lhe dar-mos grande valor, esquecendo de onde veio, só nos interessa para onde vai. Ele que veio da inspiração, ele que veio de um coração. Quando o abrimos, há uma luz que vem do seu interior, a luz da sabedoria, porque nos ensinaram a perceber cada traço, cada curva, cada subida e descida, porque aprendemos a ler, aprendemos a compreender as linhas e por vezes até as entrelinhas. 
Paramos de ler e pensamos, mesmo que fosse só por isso, vale a pena olhar sempre com olhos de espanto, a celestial obra que é a escrita, quando ela, sem emitir um único som, grita e chora e ri em nós. Fala e cala mistérios. Adormece e embala. Amiga e companheira nas nossas vidas.

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