sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Post.it: O velho e a pétala


Outro dia estava a passear no jardim da Estrela, ao longe ouvi um burburinho, aproximei-me, um grupo de idosos jogava às cartas, ali perto num banco sentado, um idoso fazia questão de manter o recato da sua solidão, olhava para a sua mão como se nela estivesse algo de muito importante, no entanto nela repousava apenas uma pétala de flor. Imaginei-lhe o diálogo que não consegui escutar, entre o velho e aquela pétala.
A última que restou de uma qualquer primavera que não chegou ao inverno, segura-a na sua mão, olha-a e diz-lhe num afago de voz, “também já eu fui flor, belo, vistoso, atrás de mim seguia um rasto de suspiros que deixava pelo ar, orgulhoso, vaidoso até enquanto os deixava cair estéreis no chão. A pétala, repousando na sua mão, parecia atenta, aconchegada naquele contar de memórias. “Sabes, pétala, também o sol já me brilhou na vida, também o luar já me embalou a esperança.  Também eu, pétala de flor, também eu já fui criança, tal como tu já foste botão por desabrochar. Hoje olho-me no espelho, mal me reconheço do que fui, como se o vento me tivesse feito com os entalhes dolorosos do caminho”. Depois, acaricia a pétala com a delicadeza que as suas mãos um pouco desajeitadas lhe permitem. “Também de ti, o vento levou quase tudo, nem sei que flor já foste, imagino-te rosa, que um coração enamorado ofereceu para homenagear o seu amor, adivinho-te malmequer que a espectativa de felicidade fez ansiosamente desfolhar”.
Suspira devagar como se o ar lhe pesasse e nesse suspiro deixa um último desabafo.
“Agora vivo um dia de cada vez, assim “a vida, jamais se cansa”. Porque, flor, sabes bem, como demora até que uma nova primavera nos volte a encontrar, e as pétalas de amor a renascer-nos dentro do peito”. Por fim sorri, um sorriso de despedida.
“Flor, boa amiga, claro que te continuo a chamar flor, mesmo quando te vejo apenas pétala, porque um amigo verdadeiro consegue ver dentro de nós, tal como tu me vês, homem sem idade e não apenas um velho”.
Hesita antes de partir, que destino dar à pétala murcha? Incapaz de se separar dela, guarda-a no bolso do casaco e segue sozinho ou talvez não…

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