sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Post.it: Coisa de avó

Já temos um bom bocado de história. Já temos o que contar, já temos o que recordar. Já temos pedaços de tempo, ondas de mar, estrelas do céu. Já apagámos velas, já celebrámos, já contámos as passas no início de cada  ano, é disso que se faz a vida, dessas pequenas/grandes coisas que nos preenchem os dias, os meses e aos poucos, os anos.
Por vezes esquecemos-nos dos anos, outras vezes apenas tentamos esquecer, fingimos que não nos lembramos, recusamos celebrá-los, não por estarmos de mal com a vida mas porque eles nos lembram a nossa finitude.
No entanto, é ela que nos ensina a valorizar a infinitude de momentos que podemos viver, partilhar, oferecer, construir.
Recordações, tantas, vão crescendo em carinho, diminuindo em detalhes. Sinto-me por vezes como um quadro que de tanto ser vislumbrado pelo sol vai perdendo a cor, os traços, os contornos tornam-se imprecisos.
Está velho e feio, diz a minha neta sem aquela malicia de quem se alheia de tudo o que não tem valor. Afago-lhe o rosto de menina ainda na tenra idade, “está igual a mim, também estou velha e feia”.
Com a mesma franqueza com que falou do quadro, “não Vó, tu és linda…, hesita, percebendo o peso das palavras, o quanto elas podem doer em corações frágeis, “bem, já és velha, mas… de uma maneira boa”.
Agradeço-lhe a “mentira”, que talvez não o seja, totalmente, quem ama vê com os olhos do coração. Por isso é verdade, para ela, sou linda.
Olho-me no espelho, uma amigo que me olha sem complacência, que me revela o que sou, com a verdade mais crua. Quem ali está sou eu e cada retalho do meu destino, rugas que escrevem no rosto caminhos por onde andei.
Aquela ruga nos cantos dos lábios, nasceu do sorriso por cada vez que olhava para os meus filhos. Aquela outra, mais profunda, perto dos olhos, lembro-me dela, surgiu no dia em que o meu companheiro de décadas partiu.
Outras muitas outras, umas de alegria ou de tristeza, talvez um dia as esqueça, mas elas vão estar sempre ali, para me contar a história do que fui, do que sou. 
Como dizia uma amiga, “a beleza não desaparece, com a idade, ela sai do rosto para se esconder no coração”.

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