segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Post.it: A Inácia

 Outubro faz-me sempre lembrar o começo das aulas, o cheiro de livros e cadernos novos, a mala da escola (no meu tempo era de cabedal), a roupa nova para o primeiro dia. Na noite anterior nem dormia com a ansiedade desse regresso, do reencontro com as coleginhas, (naquele tempo não tínhamos telemóveis  para nos mantermos em contacto durante as férias). Mas era bom, as saudades eram maiores, as surpresas eram muitas, as histórias sobre o verão eram  maravilhosas, (cheguei a pensar se algumas dessas histórias não seriam fruto das suas fantasias, por isso acrescentava algumas às minhas histórias tão pouco interessantes). Lembro-me de um ano em que o regresso parecia igual mas que rapidamente se tornou diferente. Os passos no caminho para a escola eram lentos demais para a minha ansiedade, então, deixei os olhos voarem e chegarem lá antes de mim. 
Vi ao longe um grupo de colegas, formavam um círculo grande mas repleto de curiosidade que de imediato chegou até mim, queria chegar, queria ver, queria saber, o que se passava. Larguei a mão da minha mãe e corri, cheguei lá e rompi o círculo. “Mas afinal, o que se passava? No centro do círculo estava a Inácia, com um ar assustada. Não entendi aquela atitude, aquela surpresa, aquela distância, corri para o centro abracei a Inácia e comecei logo ali uma conversa questionando-a sobre as férias. 
Ela olhou-me triste, quis sorrir sem conseguir, como resposta à minha avalanche de perguntas encolheu os ombros, depois, deu-me a mão e saímos do círculo enquanto passeávamos à volta da escola. Íamos lado a lado, de mãos dada, com aquela ternura infantil que não se importa com nada, não falávamos, apenas caminhávamos. Inundavam-me mil perguntas, o porquê daquele silêncio quase imposto, a Inácia costumava ser tão faladora. O porquê daqueles olhares estranhos, primeiro sobre a Inácia, agora sobre nós.
A professora surgiu na porta e  chamou-nos para a entrada, sentámos-nos em silêncio, de vez em quando pelo canto do olho olhava para a Inácia, estaria zangada comigo? A alegria a ansiedade à chegada ia sendo substituída por uma tristeza que não conseguia explicar.
A professora começou a falar, como algumas de vocês sabem houve um incêndio na casa da vossa colega Inácia e ela ficou queimada no rosto e algumas outras partes do corpo ao tentar salvar a sua irmã mais nova.
“Incêndio? Queimada no rosto?” Olhei de imediato para a Inácia, sim, era verdade, tinha várias marcas de queimadura no rosto, zonas muito vermelhas, quase pareciam em ferida. Mas como era possível? Eu não tinha reparado! 
Percebi então a estranheza das outras meninas. Percebi igualmente a minha atitude, para mim a Inácia continuava a ser a minha coleguinha de escola, uma menina de 9 anos, loira, de olhos brilhantes e sorriso amplo, marcas? Sim, a partir daquele dia passei a vê-las como um reflexo da sua bondade,  que se tinha atrevido a desafiar o fogo para salvar a sua irmãzinha.
"Se os nossos olhos vissem almas em vez de corpos, quão diferentes seriam os nossos ideais de beleza"


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