sexta-feira, 20 de julho de 2018

Post.it: Quem diria...

Quem diria…
Dizes num fio de voz cansada. Ultimamente é a única frase que te ouço proferir, todas as outras que se lhe seguem, são como que um balbuciar de um retorcido fonético, numa língua que ninguém entende. O teu neto em tom jocoso diz que agora falas russo e nós, reconhecendo a inocência do menino, sorrimos, com tristeza.
Quem diria, ficamos nós, também a pensar…
Que aquela menina cheia de energia, sempre a pular à corda, ela e as suas tranças negras havia de perder as tranças, e a gargalhada cristalina para se tornar doutora, com óculos de aros grossos e cabelo arranjado no cabeleireiro todas as semanas.
Quem diria que o João, aquele menino de rosto sempre afogueado e caracóis ruivos que nem o vento os desmanchava, havia de casar e ter um rebanho de filhos, cada um igualzinho ao outro, com rosto afogueado e caracóis ruivos.
Quem diria…
Que a Joaninha, tão tímida e certinha, entraria por caminhos perdidos, escondida nas sombras da noite entre uma dose na veia e a seguinte para voltar a casa, se é que aquele conjunto de paredes despidas pode ser uma casa, mas para ela é quanto basta para descansar os ossos.
Quem diria…
Que aquela criançada tão inocente e tão feliz, teria este destino, o que lhes calhou em sorte, ou em falta dela.
Hoje, na mesma rua, talvez ainda nas mesmas pedras da calçada, correm outras crianças. Por vezes apetece-me gritar-lhes calem-se! Já viram as horas que são? As pessoas precisam de dormir sem o vosso barulho! Mas suspendo o impulso, olho aqueles rostos, aperta-se-me o peito, que futuro os espera?
Não o sabem, talvez tenham mais sorte que as outras crianças que por ali passaram. 
Não posso prever o amanhã, apenas posso deixa-las viver o hoje, um agora feliz, antes daquele surpreso, quem diria…

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