terça-feira, 15 de novembro de 2016

Post.it: Palavras molhadas

Lembro-me bem, era miúda que as palavras lhe caiam pelos olhos. Sim as palavras, não estou a dizer tolices, nem  iludida pelas memórias da infância. Também estranhei na altura, mas descobri depois, muito depois, que as palavras podem realmente ser expressas de diversas formas. Aquelas, juro, saiam-lhe pelos olhos em rios de água que emergiam do coração e caiam em cascatas incontroláveis no chão.  Lembro-me de pensar e se as palavras não parassem nunca mais? Devia surgir uma inundação e com ela nunca mais haveria silêncio, tremi. 
Eram lágrimas disseram-me, tentando explicar à minha tenra idade a ignorância manifesta do que dizia, mas insisti, “Não! São palavras molhadas de dor”. 
Já nessa altura, recordo, que me expressava de forma estranha para muitos, incompreensível para outros. “Esta miúda fala como se estivesse a falar de livros”. “Como se estivesse dentro deles” retorquía outra voz pesarosa do meu suposto defeito genético. Mais consolara outra voz dizia num suspiro reconfortado “ É o seu mundo…”. 
Sim era o meu mundo, com tantos amigos, com tantas histórias, mas não infantis, dessas não gostava, eram para adormecer bebés e eu já era crescida, apesar de ainda mal chegar à mesa das refeições. 
Preferia leituras “mais crescidas”, eram mais interessantes e continham subtis lições de vida. Que tardes amenas tristes e alegres passava na companhia de  Dostoievski, Tolstoi, Zola, Sartre, V. Hugo. Heróis sem capa e espada, mas com o poder de darem aos meus olhos de miúda, um antagónico  daltonismo que me fazia ver  tudo à  volta com cores que ninguém mais via: o azul que era mais azul que o céu; o branco mais branco que as nuvens; o verde mais verde que a natureza; o vermelho mais vermelho que o sangue; o amarelo mais amarelo que o sol; o preto mais preto que o luto, as lágrimas completamente opacas de palavras. 
Hoje,  as pessoas continuam a deixar cair pelos olhos algo que não sei se são palavras, vejo mas não escuto como escutava naquela altura, culpa minha por certo. Cresci e perdi a inocência, perdi as cores e já não encontro em nenhum olhar por mais magoado que esteja, aquelas palavras que lhe caiam pelos olhos. 


Sem comentários:

Enviar um comentário