quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Era uma vez: Sementes de sonho

Sentada em frente do computador, Beatriz organizava mentalmente as ideias que iriam encher as páginas brancas. Quando se preparava para escrever uma nova história, já construída mentalmente, vinha-lhe sempre à memória a sua infância, época em que toda a sua fantasia fora criada e guardada, como um valioso tesouro de onde foram saindo todas as sementes da sua escrita.
Era no jardim das traseiras que, em miúda, passava horas esquecidas no abraço da penumbra sombria das árvores centenárias, que tinham assistido ao erguer do pequeno palacete, numa alameda relativamente próxima da pequena cidade, mas suficientemente afastada para garantir silêncio e isolamento – duas exigências do seu avô paterno, homem de posses, que o idealizara.
Beatriz habituara-se ao ambiente calmo e silencioso da casa e do jardim. Conhecia pouca gente. A estranha doença da mãe e o mistério em que todos envolviam as circunstâncias do seu nascimento tinham sido os motivos do isolamento social da família. Não fizera amigos, apenas sabia que existiam pelos livros que lia compulsivamente.
Com apenas cinco anos aprendera a ler, quando a mãe ainda conseguia resistir à atracção do silêncio de si e saía por algumas horas do seu mundo de tristeza. Com ela, aprendera a juntar letras, a formar palavras e a decifrar frases e parágrafos. Descobrira assim o mundo dos livros, onde aprendera a vontade de viver e o hábito de sonhar.
Num dia de Outono, esperara a mãe, em vão. Não quisera sair do quarto e os seus olhos ficaram perdidos em paisagens que mais ninguém via e que só a ela faziam sorrir. Percebera, mais tarde, que era um sorriso triste, de saudade e desistência.
Ninguém lhe explicara as razões de tal doença. Sabia, agora, que não era do corpo. Fora a alma que, nesse dia, não encontrara a vontade de viver e, assim, se escondera e sossegara.
Os avós, a ama e até a empregada que vinha todos os dias da cidade zangavam-se sempre que se atrevia a falar no assunto. Adivinhava a relação com o seu nascimento pela frieza com que os avós a tratavam – como se fosse a culpada da doença da mãe. Desistira de os questionar sobre o pai, tal era a fúria que lia no olhar do avô e a dor que se espelhava no da avó, quando respondiam contidamente: “– Não são assuntos para a tua idade. Dá graças pela vida boa que tens!”
Restavam-lhe as árvores do jardim. Nomeara cada uma e fizera de todas suas amigas. Lia-lhes, em voz alta, os muitos livros que a mãe coleccionara, a maioria de histórias e poemas. Era também com as suas altas amigas que lia os livros que o avô lhe trazia regularmente. Livros de História, Ciências ou Geografia – matérias que o avô dizia que ela poderia aprender sozinha. Para a Matemática, a Música e as Línguas, vinha uma professora pouco faladora, duas manhãs por semana, que se cingia aos assuntos de estudo.
O jardim era o seu mundo. Um mundo apenas seu, onde permanecia e de onde a sua mente viajava pelos oceanos e continentes da imaginação, sonhando voar acima das altas copas a que nunca tivera permissão de subir.
Nessas viagens de fingir, voara longe e descobrira tesouros que guardava nas páginas dos cadernos que nunca eram suficientemente grandes para tantas palavras, tantas ideias, tantas histórias e tantos desejos! Guardava ciosamente cada um deles numa caixa que escondera no tronco da velha tília, guardiã do seu tesouro e confidente das suas lágrimas, dos seus risos, sonhos e esperanças.
Assim se fizera adolescente e jovem mulher. Apenas adivinhara a beleza da amizade e do amor nas páginas dos livros. Vivera esses sentimentos nas viagens interiores, onde descobria e criava mundos que só ela conhecia e lhe ofereciam o que a vida real teimava em roubar-lhe.
Sabia agora que esses mundos e tesouros, só seus, lhe tinham permitido sobreviver e vencer a solidão, transportando-a em segurança para a vida adulta, onde veio a descobrir que todo o mistério, toda a tristeza que roubara a vida da mãe não passara de preconceito – um amor proibido, uma mãe solteira, uma filha escondida, um pai desconhecido e para sempre perdido.
Revoltara-se e cortara relações com o avô. Desprezara a avó pela sua submissa passividade, mas nunca pudera compensar a mãe pela vida roubada e aprisionada, nem compreender ou perdoar as vãs razões do avô - uma imagem a manter, supostos valores a preservar que, para ele, se tinham sobreposto à felicidade da filha e ao direito a crescer da neta.
Deixara a casa e o seu jardim. Esse trouxera-o na caixa dos tesouros que a velha tília tão bem soubera guardar, com os sonhos e a vida que se descobrira e crescera à sombra de tão altas e sábias amigas e que, por sorte ou providência, se transformara em imaginação, riqueza e dom que partilhava com os seus leitores. Talvez, algum deles, prisioneiro de um novo preconceito (sim, porque ultrapassado um, os auto-nomeados guardiões de valores inventam logo outro), se sentisse tão sozinho como ela fora.
Era para esse que ela contava as suas histórias, escondendo nelas asas de voar por dentro e sementes de sonho de vida respeitada e amada.
Quem sabe, talvez alguém as descobrisse e semeasse.