domingo, 26 de setembro de 2021

Post.it: Emigrantes

.”

"Aqui, emqualquer lado, onde esteja, onde vá, sinto-me órfã de continente. Nasci em áfrica, mas perdi África aos 3 anos"

Estas são as memórias de Agoa Baldé, recolho-as, uma a uma, como se apanhasse as pétalas de uma flor que ela vai desfolhando em lembranças que se vão perdendo no escoar do tempo.
“Resta-me a herança dos traços, da cor da pele, o cabelo encarapinhado e sobretudo o sentimento de pertença misturado com um vácuo que magoa, a saudade, como água numa caverna que vai deixando marcas cada vez mais  profundas. 
Ficaram os cheiros que já identifico, uma mistura de sal, suor e lágrimas. Os sons distantes mas que intuo perto quando a noite me vêm embalar, as vozes no trabalho, o mugir do gado a pastar, as crianças nos seus jogos, o vento que à noite despenteia o capim seco e assobia melodias que só África conhece. 
Há vozes que entoam mornas, tambores que ressoam como que imitando os passos dos animais na savana. O céu, tão imenso, o horizonte tão vermelho e quente, onde o  olhar corre, corre sem se cansar e sem conhecer limites; as chuvas repentinas, rios que descem e rapidamente se transformam em mares barrentos, a tristeza dos incautos que se molham sem o desejar e as crianças que festejam essa praia repentinamente nascida, com mergulhos do cimo das rochas. 
A nudez dos costumes, a oferta generosa e ingénua de cada sorriso, os bebés pendurados no dorso curvado, as vestes parcas mas marcadas por tons coloridos como se vivessem sempre em alegre festa. E lá seguem as mulheres, com os cântaros na cintura e o molhe de lenha na cabeça, bamboleando a anca, esquecendo a lonjura e a dureza do caminho. 
Lembro-me de quando pisava essas terras, quando respirava o mesmo ar quente e seco. Essa África que por vezes,  reencontro no rosto dos meus irmãos de nação, sorriu-lhes, sorriem-me, sabemos, como sabemos o que nos vai no coração, esta orfandade, esta saudade… 
Mas à noite quando fecho os olhos, volto a ser aquela menina que corria pelos trilhos lapidados no rigor das montanhas, que na rebeldia dos seus 3 anos fugia à vigilância do irmão de 6 anos, outra criança a quem incumbiam a responsabilidade de se tornar adulto roubando-lhe a infância. 
Nasci em África, há tanto, tanto tempo, que já mal me lembro, vai-me ficando cada vez mais distante, embora sempre perto do coração.

Se você pode andar, você pode dançar. Se você pode falar, você pode cantar. (provérbio africano)

26 de Setembro  Dia do Migrante

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