quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Post.it: Beirute

Às vezes, atamos a esperança com fios de cabelo. Colamos os cacos e cada dia com cola de cuspo. Adormecemos e sonhamos sonhos de algodão. Levantamos-nos e damos meio passo porque um passo inteiro nos parece a longa distância de uma auto-estrada. O sol tem um tom de inverno, as nuvens são cinzentas sem água. E tudo nos parece um véu de nevoeiro que cobre o horizonte não de neblina, mas de fumo. Como se fossem resquícios de algo que existiu e já não existe mais, o quê questionamos e o vento responde sem voz: Nós, aqui, cada vez mais sós. Porque mesmo que sejamos, vários, às vezes até, muitos, na nossa existência, no nosso sentir, somos sempre e somente, únicos. Ruiu, explodiu tudo, vidas, casas, passado, presente e futuro. Cada pedra que colocámos, cada tábua que carregamos, os degraus que nos levavam mais longe, as pontes que nos uniam. Não eram apenas edifícios, eram história, a nossa memória, o nosso teto, abrigo, leito. Um barulho ensurdecedor, de queda, de dor, de pavor. Depois parou, parou tudo, até o tempo ficou suspenso, como quem espera a medo a ordem de que pode continuar a avançar. Escuta-se um silêncio que continua a gritar-nos no peito como se fosse um pedido de socorro. Cada um pergunta-se se está vivo, sai lentamente do torpor e começa a procurar os seus familiares, amigos, colegas, vizinhos. Vemos uma mão estendida, corremos para lá tropeçando no chão, tiramos os destroços tentamos dizer-lhe que está tudo bem, mas ao lado há outra mão inanimada que nunca mais voltará a acenar. É o primeiro dia, quem sabe, o último, da nossa vida, tal como a vivíamos, ou de como a voltaremos a viver. Beirute voltará a reerguer-se, claro que sim, mas as cicatrizes, essas, ficam para sempre.



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