sexta-feira, 3 de julho de 2020

Post.it: Nada será com dantes


19 de fevereiro de 2020, 7 horas da manhã, Aeroporto Francisco Sá Carneiro, Porto.
Xin Qian olha para o relógio do telemóvel pela 10º vez, está inquieta, ansiosa por partir, por chegar, está em Portugal a fazer Erasmus tudo corre bem, mas a mãe telefonou-lhe aflita, a avó de 82 anos está muito doente, no início tinham-lhe dito que era uma simples gripe, mas rapidamente evoluiu para pneumonia e agora já estava internada nos cuidados intensivos. Xin Qian sente o coração apertado, chegará a tempo de se despedir da avó? Questiona-se, arrependida, devia ter regressa à China em Janeiro para as festividades do ano novo, mas só tinha chegado há 4 meses, andava a tentar integrar-se neste novo pais com características tão diferentes do seu, já tinha novos amigos, e quase, um namorado, mas isso, ainda não contara aos pais. A notícia da doença da avó apanhou-a de surpresa, ainda sentia no corpo o abraço que ela lhe deu no dia em embarcou, ainda lhe via o sorriso que escondia as lágrimas já cheias de saudades da neta. A sua avó sempre fora uma pessoa forte, saudável, lutadora, até adoecer ainda trabalhava todos os dias 12 horas nos arrozais de Sichuan um dos afluentes do rio Yantzé tão cheio das suas memórias de infância.
- Desculpe posso tirar esta cadeira da sua mesa? Xin Qian levanta o olhar surpreendida com a interrupção dos seus pensamentos. Sorri para a sua interlocutora, não percebe mais do que meia dúzia de palavras em português.
Janice aceita aquele sorriso como um gesto de consentimento e leva a cadeira para a sua mesa onde já se encontram o marido e os 3 filhos. Está ansiosa, mas feliz, faz 5 anos que não regressa ao Brasil, andou a juntar cada cêntimo para a viagem e, finalmente conseguiu, vai apresentar o marido português e os 3 filhos nascidos desse enlace. Quase visualizar na sua imaginação os seus pais a abraçar os netos pela primeira vez, já se vê a caminhar no calçadão das praias do Rio de Janeiro de mão dada com o João. Compõe o vestido, ajeita a roupa dos meninos, endireita a gravata do marido, estão perfeitos, pensa, quase parecemos uma família de doutores, sorri com uma sombra no olhar, a vida não tem sido fácil, trabalha nas limpezas, o marido nas obra e os filhos crescem na casa da avó paterna reformada, não há dinheiro para os pôr no infantário. Mas ainda chega para comprar um bolo e um copo de leite para cada um. As crianças empoleiram-se no balcão indecisos sobre qual bolo escolher, são tantos, gritam saltitantes.
Manuel desespera, está na fila da cafetaria do aeroporto “há horas” diz o seu relógio de impaciência e aquelas 3 crianças nunca mais se decidem sobre que querem comer. Por fim suspira, o melhor é acalmar-me, ainda tenho um ataque cardíaco e não chego à feira em Milão, afinal vim com 2 horas de antecedência para me precaver destas e de outras situações. Tenta controlar os nervos, deixando o pensamento voar, vai para Itália, há muito que anda a projectar esta viagem, tem uma pequena empresa de calçado, investiu lá todo o seu capital, todo o seu potencial humano, todos os seus sonhos. Convenceu a mulher a deixar de trabalhar e ficar ao seu lado na fábrica, juntou às suas, as poupanças dos pais e dos sogros, vai à Feira de calçado procurar novos projectos, quem sabe gostem da sua linha de produtos e consiga arranjar clientes para exportação. Aperta nervosamente a mala de tiracolo onde colocou uma amostra dos seus planos, do seu trabalho, da sua vida. Se ao menos os miúdos chegassem a uma conclusão sobre o bolo que querem… depois a grande dificuldade vai ser arranjar um lugar vago para comer descansado, talvez aquela jovem chinesa não se importe que me sente na sua mesa, parece simpática, está sempre a sorrir.
12 de Março de 2020, Hospital S. João, Porto.
Manuel, fora a Itália para visitar a feira de calçado e lá, concretizara todos os seus objectivos, nunca se sentira tão realizado, tão feliz, não fora aquela maldita gripe que apanhara em Itália, tudo lhe corria bem, em poucos dias a doença prostrara-o para a cama, contagiou a mulher, os pais, os sogros e mais duas dezenas de empregados da sua fábrica. A febre não cedia, o ar rareava-lhe nos pulmões. O médico entrou, escondido por detrás da máscara que  não dava para lhe ver a expressão de portador  de boas ou más noticias.
- Sr. Manuel, os seus exames revelam que está infectado com o novo coronavírus e vai ficar internado.
O seu coração saltou-lhe no peito, o ar sufocou-o, um suor frio desceu-lhe do rosto ou seriam lágrimas? Não o sabia dizer.
Com as emoções em conflito, um pensamento aflito. E agora?
Agora, nada será como antes…


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