Às
vezes é preciso falar de nós, conjugando o pretérito perfeito. Lembrar as
origens, a razão de sermos aquilo que somos, “porque só isso nos deixaram ser”,
diz uma voz jovem num corpo de idade indefinida, num rosto queimado pelo sol,
sombreado de noites mal dormidas, pelo seu Zé que anda no mar e o filho já lhe
segue os passos, enquanto a miúda já lhe calça os chinelos de peixeira. “A
escola? Eles lá querem saber da escola, e depois filhos de pescador e a
peixeira nunca passam disso mesmo. Bem tentei convence-los a contrariar a sina
mas não me deram ouvidos”.
Às
vezes é preciso buscarmos nos outros a senda do que somos, por mais que
queiramos não podemos alterar os nossos genes, fugir do destino que os
nossos bisavós, os nossos avós e os
nossos pais nos escreveram no ADN da existência. Claro que desejava reescrever
a minha história, afastar-me definitivamente deste caminho e deixar para os
vindouros uma outra narrativa de vida, na liberdade de a escreverem sem
influências geracionais.
Às
vezes é preciso aceitar, deixar de nos rebelarmos, aprendermos a conviver com
os traços, a semelhança da voz, apesar da dissonância de ideias, acabamos sempre
por regressar às origens, porque “uma alma sem raízes é um papagaio papel à
deriva no vento” em busca de uma
inexistente direcção.
Às
vezes é preciso reconhecer e valorizar essa herança. “Tem os olhos da mãe, o
nariz do pai, mas o feitiozinho, não se pode negar, é o da avó”. “E essa costela algarvia que não
a deixa calada um só instante? Um cansaço…”
“Mas por outro lado contrapõe-se a costela
alentejana numa indolência calorosa e uma paciência que ronda o infinito das
planícies de trigo louro”. “Não te esqueças da influência marcante das raias
fronteiriças, esse jeito espanhol que apanhou de ambos os lados da família,
olha, tornou-a desenrascada”.
Sussurram
assim as minhas “fadas madrinhas” agitando-me um futuro na ponta da “varinha de
condão”
E
assim fadada ao meu destino, num qb de quietude e inquietude, vejo os Zés
partirem nas ondas da maré, as esposas peixeiras à espera do regresso no cais
de cada madrugada e os filhos que trazem em cada molécula, marítimos vendavais mas também maternais portos de abrigo.