Por
vezes visito o baú das memórias não que seja muito ligada ao passado, na
verdade é que ele está ligado a mim, pelo que fui e sobretudo pelo que sou.
Nesta visita, questionava-me sobre como era a infância sem tv 24 horas por dia,
sem computadores, se consolas de jogos, sem telemóvel. Era uma infância feliz,
sem vazios, sem angústias, sem competitividade. Inventávamos histórias em que éramos as suas personagens. Participávamos em jogos, engendrávamos
brincadeiras.
Cresci
entre primos e primas, éramos ao todo 10, um verdadeiro clube de aventuras. Partíamos de
manhã e só nos voltavam a ver quando a noite nos chamava para o jantar, de
mochila às costas preenchida com uma merenda colorida, fazíamos as nossas “viagens”
não muito longe do olhar dos pais, dos tios, dos avós. Mas sentíamo-nos em
plena liberdade e por isso mais responsáveis por nós e pelos outros.
Acampávamos no pequeno riacho que banhava a quinta dos meus primos, nadávamos,
jogávamos às cartas, líamos uns para os outros e adormecíamos felizes na
frescura da tarde.
Noutros dias andávamos a cavalo, corríamos atrás das
ovelhas, das galinhas, acariciávamos os coelhos ou simplesmente ficávamos
embalados pelo movimento do baloiço depois de termos tentado com ele tocar o
céu com ele. Consoante as épocas tínhamos o jogo do pião, os berlindes, o jogo
do lenço, o mata, a corda de saltar e tantos outros que já me esqueci.
Fazíamos
as nossas festas de gira-discos, os bailaricos, o saltar a fogueira, a dança da
fita enrolada no poste, tínhamos os nossos festivais da canção em que éramos simultaneamente concorrentes e júris, mas não havia brigas, tudo acabava num
sorriso sem vencedores nem vencidos. Nos aniversários, no Natal, na Páscoa não
havia muitos presentes, mas havia sempre muita diversão, espírito de amizade,
alegria e fantasia.
Hoje dá-se tudo às crianças, dá-se tanto que parece nunca chegar para preencher esse vazio que
lhes cresce no peito, rasgam o papel ávidos de surpresas que rapidamente
esmorecem, rapidamente caiem no esquecimento. Alimentamos uma ansiedade de algo
que nem eles nem nós sabemos a causa. Tentamos trocar a falta de tempo, de
atenção, por prendas. Tentamos colmatar a nossa culpa, a nossa ausência, e
eles, atentos ao grito da nossa consciência tiram partido dela, pedem e exigem
um mundo todo ao seu dispor. Entristeço-me por mim, entristeço-me sobretudo por
eles, que não têm o mesmo sentido de amizade, a mesma capacidade de fantasiar,
de voar sem ser através dos jogos virtuais. Nós tínhamos tão pouco, mas éramos felizes, eles têm tudo, tudo menos a ventura de reconhecerem a sensação de
felicidade.