Quando
a conheci, cheirava a nova, soberba nas suas cores ainda muito vivas. Imaculada
na textura. Era jovem, demasiado jovem para saber o que o futuro já lhe
adivinhava.
Voltei
a encontra-la, anos mais tarde, e não tinham passado tantos anos assim, no
entanto, mal a reconheci de tão diferente que estava, tinha um trejeito de
humildade estampado nos vincos das dobras que as muitas mãos por onde passou lhe
deixaram. Tinha restos de
lágrimas daquele olhar que mal lhe conseguiu apreciar as cores, nem sentir
o doce sabor de pertença, trocou-a por
uma sopa quente que lhe reconfortou o estômago vazio, e recuperou por instantes o animo que parecia cada vez mais ausente.
Toquei-a, ainda estava quente daquele bolso de
tecido gasto onde habitou durante dias, quase meses, sentindo-se acariciada
como se fosse um pequeno ou grande tesouro para quem nada mais tinha que aquela
nota, que guardava sofregamente para uma maior necessidade que não tardou a
acontecer. Lembra-se de como foi difícil partir, sair do porto seguro onde a
tinham depositado e fazer-se de novo à estrada. Seguir na boleia de um camião,
passar pela máquina de compra de bilhetes. De entrar em restaurantes, de sair
das tabernas. De ser um presente meio escondido, envergonhado, por entre outros
de maior valor. De ser perdida numa mesa de jogo, de ser roubada a quem nada
mais tinha.
Trazia, sem conseguir contar, muitas
histórias, muitos segredos, que só o silêncio conhecia, histórias de dor e
lamento, de uma noite comprada numa esquina da cidade. Das madrugadas que lhe
deixaram cheiro a ribeira, a flores que foram oferecidas como símbolo de
bem-querer.
Quando a desdobrei, notei que parecia
cansada, o papel envelheceu, adquiriu um toque fino de tão gasto. Quase tenho
receio de lhe tocar, de a rasgar. Por fim encontro-lhe outro segredo, versos
anónimos, declamam um amor marialva que ainda não encontrou a felicidade.
É um diário de vidas, de sonhos, de lágrimas,
de alegrias. Que para todos, não passa de uma nota de poucos euros.
Continuamos em estilo biográfico, mas com um alvo diferente, diferente. Um assunto que nunca nos debruçamos a questionar. Por onde já andaram as notas que passam de mão em mão, fazendo a felicidade de uns ou a infelicidade de outros. Um presente ou um pagamento de um serviço prestado. Escrito com a habilidade a que nos habituou. Um abraço Antero.
ResponderEliminarEsplêndido, é o que me apetece dizer. Vou passar a ver com outros olhos as notas e moedas que me chegarem. Talvez encontre uma declaração anónima, um contacto, um novo conhecimento? Bj. A.
ResponderEliminarQuestiono muitas vezes por onde andaram os (euros) que recebo e que dou. Viajam pelo mundo, vivem histórias silenciosas, quem sabe felizes? Quero acreditar que sim.
ResponderEliminarMinha querida amiga, quanta imaginação entrelaçada com inspiração. Uma nota? Quem se iria lembrar de olhar assim para o dinheiro que circula imparável. Gostei muito. Beijocas, C.
ResponderEliminarAí se o dinheiro falasse… Felizmente que não fala, já há vozes a mais a reclamar pela sua ausência. Alberto F.
ResponderEliminarEncontras sempre um tema curioso para nos apresentar. Não sei onde vais buscar tanta inspiração. Suponho que à pessoa especial que és.
ResponderEliminarQue belas memórias deve ter cada nota que anda a circular por aí. Amália
ResponderEliminarQuem se lembraria de abordar um tema destes. Só tu para dares voz ao silêncio!
ResponderEliminarQuem diria que uma pequena nota (guarda assim tantas memórias).
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