Olhou uma vez mais a paisagem. A luz da manhã acabada de raiar enchia o ar de tonalidades difusas e suaves, realçando os verdes do arvoredo e dos prados e fazendo cintilar as águas serenas e brilhantes do rio que percorria a planície, tornando-a húmida e a frescura. Toda a Natureza começava a acordar, parecendo desejar um bom dia à princesa. A brisa matinal fazia cantar árvores, arbustos e até as rochas que ponteavam a paisagem, as variadas espécies de aves cantavam, parecendo conversar entre si, num desafio de pios e trinados a muitas vozes, até os insectos e répteis se ouviam no seu movimento por entre pedras e ervas baixas. Lá longe, as montanhas douradas pareciam aconchegar toda a planície, num abraço protector.
A princesa conhecia cada pormenor desta paisagem que olhara vezes sem conta e na qual, em cada dia, descobrira novo encanto. A custo, desviou o olhar e voltou à penumbra da sala que a acolhera durante o seu longo exílio. Procurou sentido em tudo e voltou a observar a enorme porta de madeira repleta de apontamentos das suas recordações. Sentou-se no cadeirão maior, onde tantas vezes se sentara e adormecera. Deitou-se e deixou a sua mente descansar e o corpo relaxar. Sentiu-se a adormecer, mas não se importou. Tinha tempo.
Parecia-lhe que acabara de adormecer, quando ouviu uma voz distante que mal compreendia: “Clara, Clara. Estás a ouvir-me? Ainda estás aí?”
Não percebeu o sentido do que a voz longínqua dizia e prestou mais atenção. A voz tornou-se mais perceptível: “Tenho saudades de te ouvir! Queria tanto que ainda estivesses aí!”
Marbel ficou ainda mais intrigada e, vagamente, soube que falavam com ela, apesar do nome. Um nome que nunca ouvira mas que lhe parecia estranhamente familiar. Esforçou-se por ouvir melhor. A voz, sabia que já a ouvira. Mas, onde? “Clara, meu amor. Sei que não me ouves, mas eu continuo aqui, à tua espera. Faz hoje 100 dias que aqui estás, calada e desligada de tudo. Mas eu não vou desistir de ti!”
Marbel, mais que ouvir, sentiu aquela voz e reconheceu o carinho e a sensação de bem-estar que ela lhe provocava. Apercebeu-se lentamente de outra mão que tocava a sua, em suaves massagens. Inquietou-se e pensou que estava a sonhar. Quis acordar e voltar à janela, apeteceu-lhe voar em direcção ao céu, percorrer a planície e subir às montanhas douradas, planar sobre o lago das mil cores e pisar a ponte de água sólida e azul fundo. Mas, por alguma razão, sentia-se imobilizada, com uma estranha sensação de entorpecimento e de distância em relação à realidade. E a voz continuava lá, as mãos (agora eram duas) apertavam a sua, carinhosamente. “Às vezes, penso que ouves, quero acreditar que ainda estás aí. Quem me dera que acordasses! Quem me dera que aquele estúpido acidente não tivesse acontecido!”
Marbel olhava em redor. A sala estava vazia e, sem perceber como, tinha-se tornado fria e as inscrições da porta tinham desaparecido. A janela parecia mais longe e estava a ficar escuro. Como, se era manhã? Acidente? A voz falava acidente? Será que se referia à travessia do lago e à prisão e rapto que sofrera na ilha? Mas isso fora há tanto tempo e tudo se resolvera!
Desejou que a sua mãe e Ornix chegassem depressa. Pareceu-lhe ouvir os seus passos. A porta abriu-se e eles entraram, mas parecia que não a viam. Só olhavam um para o outro, sorriam, abraçavam-se e beijavam-se, como se estivessem sós. Quis gritar: “Eu estou aqui!” Mas a boca não lhe obedeceu. Porém, a mãe olhou-a e sorriu-lhe e inundou-a com aquele seu olhar cheio de luz e esperança. Disse-lhe adeus e foi-se embora com Ornix, deixando a sua luz na sala. Tentou levantar-se e segui-la. O grito “mãe” morreu nos seus lábios. Sentiu-se perdida. Agarrou-se à voz.
“Clara, meu amor, quem me dera que te decidisses a voltar”. Reconheceu claramente a voz que continuava a dirigir-se a ela com ternura e a imagem de um rosto ganhou vida na sua mente. A luz continuava a encher a sala, apesar da mãe ter partido e, a pouco e pouco, foi descobrindo que já não era a mesma sala. Só um clarão e uma superfície lisa e branca com um candeeiro que iluminava tudo.
“Clara, abriste os olhos! Vê, sou eu!”
Conheceu a voz e identificou o rosto. Na sua mente foram surgindo flashes de memória: uma notícia – qualquer coisa de crise e corrupção no governo; um embate estrondoso e uma dor lancinante; muito barulho e gritos e sirenes; e uma viagem em que voava sozinha sobre a água. E o reino mágico? A ilha? O lago? A rainha Amada? As montanhas douradas? Quis voltar para o seu aposento de exílio, para as recordações gravadas na porta de madeira, mas não as encontrou, perdera o caminho! Sentiu-se perdida e assustada. Fechou os olhos para fugir à intensidade da luz e esconder-se em si própria. Mas a voz continuava lá, só a voz. As mãos tinham desaparecido. “Doutor! Venha. A Clara abriu os olhos e mexeu-se! Doutor!”
“Clara?” Na sua mente surgiu outra recordação – a imagem de Clara. “Eu sou a Clara!” Os flashes de memória voltaram, desta vez com mais sequência e sentido. Tivera um acidente e sentira que ia morrer. Mas não! Apenas fora para o reino mágico! Compreendeu: fora um sonho – um sonho muito comprido! E bom. Abriu os olhos e olhou em redor, estava num quarto de hospital.
A voz voltou: “Clara! Voltaste!”. Não era uma voz – era a outra metade de si! Apareceu tudo em catadupa, as lembranças, o sentimento e … o medo. Fechou os olhos, assustada com a realidade, e pensou: “Sou eu! Eu sou a Clara! Estou doente? Estive a dormir?” A palavra “coma” veio-lhe ao pensamento. Voltou a sentir medo. Deixou-se embalar pela voz e afagar pelas mãos que tinham voltado. Reconheceu o toque, ficou comovida com ele e com a voz doce e terna: “Meu amor, volta. Não me fujas outra vez!”
Compreendeu e aceitou. Abriu os olhos, ao mesmo tempo que as palavras lhe nasciam no coração e a boca as deixava sair, com esforço: “Voltei e vou ficar! Meu amor!”.
Anos mais tarde, recordavam aquela manhã do despertar e, num abraço confortável e carinhoso, observavam a planície, onde corria um rio, nascido nas montanhas que se avistavam ao longe. Clara não quisera perder completamente o reino unido das fadas e dos seres brilhantes e, por isso, tinham vindo morar ali, naquela casa afastada da cidade.
Muitas vezes falavam desse reino e de como seria bom que, neste nosso mundo, os responsáveis políticos tivessem a sabedoria da rainha Amada e de Ornix! Muitas vezes pensaram em escrever a história e publicá-la. Quem sabe, faria alguma diferença! Chegaram a escrevê-la, mas nunca a publicaram – era um reino perfeito de mais para alguém acreditar!
………….
Fim