Sou
um rosto entre muitos outros, sou apenas um passageiro nos transportes
públicos, tento ler, impossível a minha “vizinha” do lugar em frente está
audivelmente entretida a conversar através do telemóvel. Olho-a sem ela me
olhar, escuto-a não por curiosidade mas porque é impossível não ouvir o que
diz. Em poucos minutos fico a saber tanto sobre si: Chama-se Raquel, “depois
ela disse Raquel tem de ter atenção ao que faz”. O que fazia? Trabalhava numa
agência de viagens “vai ter de remarcar aquela viagem e explicar a alteração ao
cliente”. Estava chateada, sentia-se injustiçada, “mas a culpa foi dela que
veio alterar a minha página no computador, agora diz que o erro foi meu”. Era
casada, ainda apaixonada, “Sim amor eu sei, mas que queres irrita-me, um dia deste
passo-me”. Tinha filhos “olha vais buscar as crianças à escola? É que eu já
estou atrasa por causa daquela C***”. Não se importava com quem estava a seu
lado “Estou a dizer asneira? Ora quero lá saber, quem não quiser ouvir tape os
ouvidos, vivemos num país livre”. De repente senti-me envergonhada por estar a
invadir a sua liberdade de estar, ensurdeci-me, fugi com o olhar para a janela.
Por um curto instante, de imediato a minha atenção voltou a ficar presa nela,
chorava (eram os nervos, o desabafo. Aquela estranha chorava e a mim doía-me
como se a sua mágoa fosse igualmente minha. Porque também eu me tinha chateado
no emprego nesse dia, também a mim me apetecia gritar impropérios adequados à
atitude da minha colega, de C*** para baixo. Também me apetecia saber que
regressava a casa e encontrava alguém amoroso à minha espera, as crianças a
sorrir e aquela voz terna a dizer-me que o dia de amanhã será muito melhor.
Fechava a porta, fechava as lembranças, fechava o dia, fechava por fim com o
corpo o estreitamento daquele abraço.
Quando
desceu do autocarro, apeteceu-me oferecer-lhe um sorriso, um adeus, quem sabe,
um até amanhã se vier de novo atrasada, ou um até nunca mais se apanhar o
autocarro previsto. Adeus Raquel, continuará no seu emprego, a aturar a sua
colega, a correr para os transportes, a correr para casa, para a família e a
afastar-se de mim. Eu que nada signifiquei na sua vida, na curta viagem, não
sabe nada sobre a minha pessoa, nem o nome, o que faço, como vivo. Não olhou
sequer para o meu rosto, para ela continuei anónima. Para mim ela não é mais
uma pessoa anónima, tornou-se uma companheira, uma “amiga” que me deu a
conhecer um pouco da sua história e me fez acreditar que, aconteça o que
acontecer, no final do dia, pode haver um momento, por pequeno que seja que é
nosso, maravilhosamente nosso.