10 de Julho 2020, 23:00h, China.
Xin Qian olha
para o relógio do telemóvel, está quase na hora de embarcar, já se despediu da
família, sem abraços, se havia sorrisos não os viu, estavam escondidos por
detrás da máscara. Recorda a última partida, sente a falta dos familiares
ausentes, a avó, o tio, as duas primas, sem esquecer alguns amigos de infância,
todos partiram levados pela devastadora pandemia do Covid-19. Regressa a
Portugal para continuar os estudos, é um regresso de coração magoado, de sonhos
roubados. Queria ficar na China ajudar
os pais, os irmãos, o seu país a sair da escuridão, da solidão, mas tem de
continuar a construir a sua vida, deve isso a quem partiu, deve isso a quem
permanece e a incentiva a seguir em frente.
10 de Julho
2020, 12:00, Brasil
Janice olha
para os filhos, tenta sorrir-lhes mas lembra-se que eles não lhe vêem o sorriso,
agora é preciso que as palavras tenham mais expressão que os gestos. É preciso
abraçar sem unir os corpos, beijar sem tocar a pele. O reencontro com o seu Brasil desta vez foi diferente, sentiu a
falta daquele ambiente alegre e festivo, agora notou-lhe uma apatia, o medo em
cada rosto escondido por detrás da máscara. No bairro onde cresceu ouvia-se
todo o dia música, agora, ecoa um pesado silêncio por todas as vidas que foram
levadas por uma pandemia que não entendem. Chegou como uma onda gigantesca,
entrou nos bairros, arrombou as portas, roubou pais aos filhos, roubou filhos
aos pais, irmãos, tios, primos, amigos, vizinhos. Também Janice sentiu os
efeitos do vírus no seu corpo, sufocando-a. Teve medo, muito medo de nunca mais
ver os filhos, os pais, o marido, chorou, rezou, demorou mas passou,
sobreviveu. Está de volta a Portugal, um regresso tão diferente da partida. Tem
saudade dessa alegria, desse mundo.
10 de Julho
2020, 16:00, Portugal.
Manuel
caminha devagar, cansa-se muito, o seu corpo ainda se recente da doença, foram
20 dias nos cuidados intensivos, quando recuperou, teve que reaprender a
respirar sozinho, teve que aprender a erguer-se, a mover-se quando o cansaço
lhe pesava no corpo e na alma. Por fim chegaram as visitas, precisava tanto dos
seus abraços, dos seus sorrisos mas não lhe foi permitido. Vinham com máscaras,
viseiras, luvas, batas, pareciam que vinham de outro mundo. Chegou a pensar se
era ele que estava noutro mundo. Teria morrido? Questionou-se. Garantiram-lhe
que estava vivo. Contaram-lhe que várias pessoas suas conhecidas tinham falecido
devido ao Covid-19, sentiu-se quase morrer com a dor de cada partida, amigos,
empregados. Teria sido culpa sua, infectou todas essas pessoas? Chorou, pediu
perdão. Meses depois continuava a sentir o peso da culpa. Mas ele não sabia que
tinha apanhado aquele vírus, não sabia que se transmitia tão facilmente,
desconhecia que era tão letal. Nas noites de insónia que eram muitas,
continuava a rezar pelos que partiram, continuava a pedir-lhes perdão.
Xin Qian
chegou a Portugal, nos placards viu a frase Vai Ficar Tudo Bem, o seu fraco
domínio da língua portuguesa fez com que demorasse a entender o que lia. Por
fim, sentiu o coração sorrir, uma luz de esperança invadiu-a, pegou na mala e
saiu do aeroporto, tinha que acreditar, por ela e por todos o que acreditavam
no seu futuro.
Janice saiu
do aeroporto devagar, as crianças festejavam a chegada a casa, nas janelas
folhas com arco-íris desenhados e a palavra Vai Ficar Tudo Bem, fê-la sorrir,
enquanto uma lágrima lhe deslizava silenciosa, o marido abraçou-a e repetiu a
frase como quem acredita, Janice acreditou nele, - Sim, Vai Ficar Tudo Bem…
Manuel
sentou-se junto do filho de 6 anos, afagou-lhe os ombros e desenhou com ele um
arco-íris no papel e uma frase que lhe custou a escrever pela incerteza que lhe
toldava o sentir. O filho sorrio-lhe, era um sorriso franco, confiante, - Vai
ficar tudo bem, pai. – Sim, vai, filho…
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