sexta-feira, 31 de julho de 2020

Post.it: Biografia de um traço


Era para nascer ponto mas começou a crescer, chamaram-lhe traço mas ele riu-se de quem o diminuía e em crescendo, desenhou-se linha reta. 
Ainda não se lhe conhecia forma definitiva,  mas com passar dos anos começou a ganhar sinuosas curvas. Inspirado talvez por afetos, por uma felicidade que agarrava como se fosse unicamente sua,  tornou-se esboço de um caminho repleto de histórias, saudosas memórias.
Entrou em declive, murmuravam  alguns, mas ele que conhecia como ninguém a fórmula mágica do sentir, ganhava coragem e ascendia contornando as dificuldades, vencendo as intempéries dos dias cinzentos, curando as feridas, evitando outras e sorrindo, sorrindo sempre porque era preciso enganar  as emoções mais fortes evitando assim a descrença nos verdadeiros sentimentos.
Nem sempre foi fácil, mas o tempo revelou-lhe que não era impossível. Houve momentos… Preferiu esquece-los e guardar apenas os que valia a pena guardar. Se não fosse assim tinha-se tornado cúbico, árido, cheio de recantos sombrios.
Com o tempo ganhou forma, descobriu a fórmula de existir sem desistir, sem parar, sem sucumbir. No principio era um ponto, uma linha reta que encontrou a maneira de arredondar cada aresta, cresceu, cresceu e encontrou o contorno perfeito de ser e de partilhar a sua essência.


sexta-feira, 24 de julho de 2020

Post.it: O que diz o olhar


De repente os olhos deixam de ser um simples olhar, começam a falar, a ter conversas inteiras. Os olhos que choravam agora também oferecem sorrisos, aconchego. Os olhos revelam consentimento, discordância. Os olhos dão abraços sem estender os braços. Os olhos aquecem os sentidos, acarinham alma. Os olhos escutam quando nos olham com a atenção de um amigo que tem todo o tempo disponível para nós. Agora que uma situação peculiar nos tapou a boca, que nos roubou o sorriso do rosto, felizmente que temos os olhos para nos dar cor, calor e expressão às palavras. Este vírus quer extorquir-nos o ar, calar-nos, separar-nos, isolar-nos. Este vírus usurpador quer-nos unicamente para si, exila-nos, condena-nos à solidão, remete-nos ao medo, à desconfiança, subtrair-nos a esperança. Faz-nos sair do caminho que tínhamos como certo, leva-nos para dias cheios de deserto. Prende-nos os pensamentos, tapa-nos a boca. Mas mesmo que nos ponham óculos, viseiras, os olhos nunca vão deixar de falar, gritar, sorrir, de dizer que estamos aqui, que vamos resistir e olhar de frente cada desafio, sem virar a cara, sem fechar os olhos!
Ainda há muita beleza para ver, ainda há muito amor para dar, muito afeto para repartir, muitos sorrisos por sorrir e muitas palavras de esperança, de encorajamento que só os olhos conseguem revelar.


sexta-feira, 17 de julho de 2020

Post.it: Tudo me foge


Tudo me foge: O tempo, a vida, as sensações. Os raios de sol no olhar, o sorriso como espasmo do coração, a vontade de tudo e em tudo. Fica este nada, este vazio, esta sensação de partida. 
Há quem diga que se tem muitos nascimentos, será este mais um deles? É difícil nascer, falta-me uma mãe a expulsar-me do útero, falta-me um pai de braços abertos para me receber, falta-me os avós num olhar reconfortante, falta-me a direcção sem medo de me perder.
Nascer depois de tantas mortes é estranhamente dolorosa como se nos arrancassem do antes sem sabermos se será melhor o depois. É absurdo, mas habituamos-nos ao nosso dia a dia, mesmo que não nos faça feliz, é como um sapato velho  e feio que até nos magoa ao caminhar mas já está moldado ao nosso pé, já lhe conhecemos os defeitos e ele conhece os nossos. 
Conhecemos o hoje, o amanhã torna-se um abismo de incógnitas, será fundo, haverá luz, iremos perder-nos, quem nos responde? O silêncio! Velho companheiro, ele está sempre certo porque não se atreve a errar. 
Nós ao contrário, falamos, gritamos, achamos que temos sempre razão, lutamos vencemos mas perdemos sempre algo em cada vitória, um pouco da nossa paz por todas as guerras que travámos, porque há sempre sangue mesmo que não nos saia das veias, na dor,  no sofrimento, o nosso e o que causamos. 
Tudo me foge, olho em frente, será apenas um novo encontro?



sexta-feira, 10 de julho de 2020

Post.it: Vai ficar tudo bem


10  de Julho 2020, 23:00h, China.
Xin Qian olha para o relógio do telemóvel, está quase na hora de embarcar, já se despediu da família, sem abraços, se havia sorrisos não os viu, estavam escondidos por detrás da máscara. Recorda a última partida, sente a falta dos familiares ausentes, a avó, o tio, as duas primas, sem esquecer alguns amigos de infância, todos partiram levados pela devastadora pandemia do Covid-19. Regressa a Portugal para continuar os estudos, é um regresso de coração magoado, de sonhos roubados. Queria ficar na China  ajudar os pais, os irmãos, o seu país a sair da escuridão, da solidão, mas tem de continuar a construir a sua vida, deve isso a quem partiu, deve isso a quem permanece e a incentiva a seguir em frente.
10 de Julho 2020, 12:00, Brasil
Janice olha para os filhos, tenta sorrir-lhes mas lembra-se que eles não lhe vêem o sorriso, agora é preciso que as palavras tenham mais expressão que os gestos. É preciso abraçar sem unir os corpos, beijar sem tocar a pele. O reencontro com o  seu Brasil desta vez foi diferente, sentiu a falta daquele ambiente alegre e festivo, agora notou-lhe uma apatia, o medo em cada rosto escondido por detrás da máscara. No bairro onde cresceu ouvia-se todo o dia música, agora, ecoa um pesado silêncio por todas as vidas que foram levadas por uma pandemia que não entendem. Chegou como uma onda gigantesca, entrou nos bairros, arrombou as portas, roubou pais aos filhos, roubou filhos aos pais, irmãos, tios, primos, amigos, vizinhos. Também Janice sentiu os efeitos do vírus no seu corpo, sufocando-a. Teve medo, muito medo de nunca mais ver os filhos, os pais, o marido, chorou, rezou, demorou mas passou, sobreviveu. Está de volta a Portugal, um regresso tão diferente da partida. Tem saudade dessa alegria, desse mundo.
10 de Julho 2020, 16:00, Portugal.
Manuel caminha devagar, cansa-se muito, o seu corpo ainda se recente da doença, foram 20 dias nos cuidados intensivos, quando recuperou, teve que reaprender a respirar sozinho, teve que aprender a erguer-se, a mover-se quando o cansaço lhe pesava no corpo e na alma. Por fim chegaram as visitas, precisava tanto dos seus abraços, dos seus sorrisos mas não lhe foi permitido. Vinham com máscaras, viseiras, luvas, batas, pareciam que vinham de outro mundo. Chegou a pensar se era ele que estava noutro mundo. Teria morrido? Questionou-se. Garantiram-lhe que estava vivo. Contaram-lhe que várias pessoas suas conhecidas tinham falecido devido ao Covid-19, sentiu-se quase morrer com a dor de cada partida, amigos, empregados. Teria sido culpa sua, infectou todas essas pessoas? Chorou, pediu perdão. Meses depois continuava a sentir o peso da culpa. Mas ele não sabia que tinha apanhado aquele vírus, não sabia que se transmitia tão facilmente, desconhecia que era tão letal. Nas noites de insónia que eram muitas, continuava a rezar pelos que partiram, continuava a pedir-lhes perdão.
Xin Qian chegou a Portugal, nos placards viu a frase Vai Ficar Tudo Bem, o seu fraco domínio da língua portuguesa fez com que demorasse a entender o que lia. Por fim, sentiu o coração sorrir, uma luz de esperança invadiu-a, pegou na mala e saiu do aeroporto, tinha que acreditar, por ela e por todos o que acreditavam no seu futuro.
Janice saiu do aeroporto devagar, as crianças festejavam a chegada a casa, nas janelas folhas com arco-íris desenhados e a palavra Vai Ficar Tudo Bem, fê-la sorrir, enquanto uma lágrima lhe deslizava silenciosa, o marido abraçou-a e repetiu a frase como quem acredita, Janice acreditou nele, - Sim, Vai Ficar Tudo Bem…
Manuel sentou-se junto do filho de 6 anos, afagou-lhe os ombros e desenhou com ele um arco-íris no papel e uma frase que lhe custou a escrever pela incerteza que lhe toldava o sentir. O filho sorrio-lhe, era um sorriso franco, confiante, - Vai ficar tudo bem, pai. – Sim, vai, filho…



sexta-feira, 3 de julho de 2020

Post.it: Nada será com dantes


19 de fevereiro de 2020, 7 horas da manhã, Aeroporto Francisco Sá Carneiro, Porto.
Xin Qian olha para o relógio do telemóvel pela 10º vez, está inquieta, ansiosa por partir, por chegar, está em Portugal a fazer Erasmus tudo corre bem, mas a mãe telefonou-lhe aflita, a avó de 82 anos está muito doente, no início tinham-lhe dito que era uma simples gripe, mas rapidamente evoluiu para pneumonia e agora já estava internada nos cuidados intensivos. Xin Qian sente o coração apertado, chegará a tempo de se despedir da avó? Questiona-se, arrependida, devia ter regressa à China em Janeiro para as festividades do ano novo, mas só tinha chegado há 4 meses, andava a tentar integrar-se neste novo pais com características tão diferentes do seu, já tinha novos amigos, e quase, um namorado, mas isso, ainda não contara aos pais. A notícia da doença da avó apanhou-a de surpresa, ainda sentia no corpo o abraço que ela lhe deu no dia em embarcou, ainda lhe via o sorriso que escondia as lágrimas já cheias de saudades da neta. A sua avó sempre fora uma pessoa forte, saudável, lutadora, até adoecer ainda trabalhava todos os dias 12 horas nos arrozais de Sichuan um dos afluentes do rio Yantzé tão cheio das suas memórias de infância.
- Desculpe posso tirar esta cadeira da sua mesa? Xin Qian levanta o olhar surpreendida com a interrupção dos seus pensamentos. Sorri para a sua interlocutora, não percebe mais do que meia dúzia de palavras em português.
Janice aceita aquele sorriso como um gesto de consentimento e leva a cadeira para a sua mesa onde já se encontram o marido e os 3 filhos. Está ansiosa, mas feliz, faz 5 anos que não regressa ao Brasil, andou a juntar cada cêntimo para a viagem e, finalmente conseguiu, vai apresentar o marido português e os 3 filhos nascidos desse enlace. Quase visualizar na sua imaginação os seus pais a abraçar os netos pela primeira vez, já se vê a caminhar no calçadão das praias do Rio de Janeiro de mão dada com o João. Compõe o vestido, ajeita a roupa dos meninos, endireita a gravata do marido, estão perfeitos, pensa, quase parecemos uma família de doutores, sorri com uma sombra no olhar, a vida não tem sido fácil, trabalha nas limpezas, o marido nas obra e os filhos crescem na casa da avó paterna reformada, não há dinheiro para os pôr no infantário. Mas ainda chega para comprar um bolo e um copo de leite para cada um. As crianças empoleiram-se no balcão indecisos sobre qual bolo escolher, são tantos, gritam saltitantes.
Manuel desespera, está na fila da cafetaria do aeroporto “há horas” diz o seu relógio de impaciência e aquelas 3 crianças nunca mais se decidem sobre que querem comer. Por fim suspira, o melhor é acalmar-me, ainda tenho um ataque cardíaco e não chego à feira em Milão, afinal vim com 2 horas de antecedência para me precaver destas e de outras situações. Tenta controlar os nervos, deixando o pensamento voar, vai para Itália, há muito que anda a projectar esta viagem, tem uma pequena empresa de calçado, investiu lá todo o seu capital, todo o seu potencial humano, todos os seus sonhos. Convenceu a mulher a deixar de trabalhar e ficar ao seu lado na fábrica, juntou às suas, as poupanças dos pais e dos sogros, vai à Feira de calçado procurar novos projectos, quem sabe gostem da sua linha de produtos e consiga arranjar clientes para exportação. Aperta nervosamente a mala de tiracolo onde colocou uma amostra dos seus planos, do seu trabalho, da sua vida. Se ao menos os miúdos chegassem a uma conclusão sobre o bolo que querem… depois a grande dificuldade vai ser arranjar um lugar vago para comer descansado, talvez aquela jovem chinesa não se importe que me sente na sua mesa, parece simpática, está sempre a sorrir.
12 de Março de 2020, Hospital S. João, Porto.
Manuel, fora a Itália para visitar a feira de calçado e lá, concretizara todos os seus objectivos, nunca se sentira tão realizado, tão feliz, não fora aquela maldita gripe que apanhara em Itália, tudo lhe corria bem, em poucos dias a doença prostrara-o para a cama, contagiou a mulher, os pais, os sogros e mais duas dezenas de empregados da sua fábrica. A febre não cedia, o ar rareava-lhe nos pulmões. O médico entrou, escondido por detrás da máscara que  não dava para lhe ver a expressão de portador  de boas ou más noticias.
- Sr. Manuel, os seus exames revelam que está infectado com o novo coronavírus e vai ficar internado.
O seu coração saltou-lhe no peito, o ar sufocou-o, um suor frio desceu-lhe do rosto ou seriam lágrimas? Não o sabia dizer.
Com as emoções em conflito, um pensamento aflito. E agora?
Agora, nada será como antes…