Lembro-me
bem, era miúda que as palavras lhe caiam pelos olhos. Sim as palavras, não
estou a dizer tolices, nem iludida pelas
memórias da infância. Também estranhei na altura, mas descobri depois, muito
depois, que as palavras podem realmente ser expressas de diversas formas.
Aquelas, juro, saiam-lhe pelos olhos em rios de água que emergiam do coração e
caiam em cascatas incontroláveis no chão.
Lembro-me de pensar e se as palavras não parassem nunca mais? Devia
surgir uma inundação e com ela nunca mais haveria silêncio, tremi.
Eram
lágrimas disseram-me, tentando explicar à minha tenra idade a ignorância
manifesta do que dizia, mas insisti, “Não! São palavras molhadas de dor”.
Já
nessa altura, recordo, que me expressava de forma estranha para muitos,
incompreensível para outros. “Esta miúda fala como se estivesse a falar de
livros”. “Como se estivesse dentro deles” retorquía outra voz pesarosa do meu
suposto defeito genético. Mais consolara outra voz dizia num suspiro
reconfortado “ É o seu mundo…”.
Sim
era o meu mundo, com tantos amigos, com tantas histórias, mas não infantis,
dessas não gostava, eram para adormecer bebés e eu já era crescida, apesar de
ainda mal chegar à mesa das refeições.
Preferia
leituras “mais crescidas”, eram mais interessantes e continham subtis lições de
vida. Que tardes amenas tristes e alegres passava na companhia de Dostoievski, Tolstoi, Zola, Sartre, V. Hugo.
Heróis sem capa e espada, mas com o poder de darem aos meus olhos de miúda, um
antagónico daltonismo que me fazia
ver tudo à volta com cores que ninguém mais via: o azul
que era mais azul que o céu; o branco mais branco que as nuvens; o verde mais
verde que a natureza; o vermelho mais vermelho que o sangue; o amarelo mais
amarelo que o sol; o preto mais preto que o luto, as lágrimas completamente
opacas de palavras.
Hoje, as pessoas continuam a deixar cair pelos
olhos algo que não sei se são palavras, vejo mas não escuto como escutava
naquela altura, culpa minha por certo. Cresci e perdi a inocência, perdi as
cores e já não encontro em nenhum olhar por mais magoado que esteja, aquelas
palavras que lhe caiam pelos olhos.
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