Sentada
em frente do computador, Beatriz organizava mentalmente as ideias que iriam
encher as páginas brancas. Quando se preparava para escrever uma nova história,
já construída mentalmente, vinha-lhe sempre à memória a sua infância, época em
que toda a sua fantasia fora criada e guardada, como um valioso tesouro de onde
foram saindo todas as sementes da sua escrita.
Era
no jardim das traseiras que, em miúda, passava horas esquecidas no abraço da
penumbra sombria das árvores centenárias, que tinham assistido ao erguer do
pequeno palacete, numa alameda relativamente próxima da pequena cidade, mas
suficientemente afastada para garantir silêncio e isolamento – duas exigências
do seu avô paterno, homem de posses, que o idealizara.
Beatriz
habituara-se ao ambiente calmo e silencioso da casa e do jardim. Conhecia pouca
gente. A estranha doença da mãe e o mistério em que todos envolviam as
circunstâncias do seu nascimento tinham sido os motivos do isolamento social da
família. Não fizera amigos, apenas sabia que existiam pelos livros que lia compulsivamente.
Com
apenas cinco anos aprendera a ler, quando a mãe ainda conseguia resistir à atracção
do silêncio de si e saía por algumas horas do seu mundo de tristeza. Com
ela, aprendera a juntar letras, a formar palavras e a decifrar frases e
parágrafos. Descobrira assim o mundo dos livros, onde aprendera a vontade de
viver e o hábito de sonhar.
Num
dia de Outono, esperara a mãe, em vão. Não quisera sair do quarto e os seus
olhos ficaram perdidos em paisagens que mais ninguém via e que só a ela
faziam sorrir. Percebera, mais tarde, que era um sorriso triste, de saudade e
desistência.
Ninguém
lhe explicara as razões de tal doença. Sabia, agora, que não era do corpo. Fora
a alma que, nesse dia, não encontrara a vontade de viver e, assim, se escondera
e sossegara.
Os
avós, a ama e até a empregada que vinha todos os dias da cidade zangavam-se
sempre que se atrevia a falar no assunto. Adivinhava a relação com o seu
nascimento pela frieza com que os avós a tratavam – como se fosse a culpada da doença
da mãe. Desistira de os questionar sobre o pai, tal era a fúria que lia no
olhar do avô e a dor que se espelhava no da avó, quando respondiam contidamente:
“– Não são assuntos para a tua idade. Dá graças pela vida boa que tens!”
Restavam-lhe
as árvores do jardim. Nomeara cada uma e fizera de todas suas amigas. Lia-lhes,
em voz alta, os muitos livros que a mãe coleccionara, a maioria de histórias e
poemas. Era também com as suas altas amigas que lia os livros que o avô lhe
trazia regularmente. Livros de História, Ciências ou Geografia – matérias que o
avô dizia que ela poderia aprender sozinha. Para a Matemática, a Música e as Línguas,
vinha uma professora pouco faladora, duas manhãs por semana, que se cingia aos
assuntos de estudo.
O
jardim era o seu mundo. Um mundo apenas seu, onde permanecia e de onde a sua
mente viajava pelos oceanos e continentes da imaginação, sonhando voar acima
das altas copas a que nunca tivera permissão de subir.
Nessas
viagens de fingir, voara longe e descobrira tesouros que guardava nas páginas
dos cadernos que nunca eram suficientemente grandes para tantas palavras,
tantas ideias, tantas histórias e tantos desejos! Guardava ciosamente cada um
deles numa caixa que escondera no tronco da velha tília, guardiã do seu tesouro
e confidente das suas lágrimas, dos seus risos, sonhos e esperanças.
Assim
se fizera adolescente e jovem mulher. Apenas adivinhara a beleza da amizade e
do amor nas páginas dos livros. Vivera esses sentimentos nas viagens
interiores, onde descobria e criava mundos que só ela conhecia e lhe ofereciam
o que a vida real teimava em roubar-lhe.
Sabia
agora que esses mundos e tesouros, só seus, lhe tinham permitido sobreviver e
vencer a solidão, transportando-a em segurança para a vida adulta, onde veio a
descobrir que todo o mistério, toda a tristeza que roubara a vida da mãe não
passara de preconceito – um amor proibido, uma mãe solteira, uma filha
escondida, um pai desconhecido e para sempre perdido.
Revoltara-se
e cortara relações com o avô. Desprezara a avó pela sua submissa passividade,
mas nunca pudera compensar a mãe pela vida roubada e aprisionada, nem
compreender ou perdoar as vãs razões do avô - uma imagem a manter, supostos
valores a preservar que, para ele, se tinham sobreposto à felicidade da filha e
ao direito a crescer da neta.
Deixara
a casa e o seu jardim. Esse trouxera-o na caixa dos tesouros que a velha tília
tão bem soubera guardar, com os sonhos e a vida que se descobrira e crescera à
sombra de tão altas e sábias amigas e que, por sorte ou providência, se
transformara em imaginação, riqueza e dom que partilhava com os seus leitores.
Talvez, algum deles, prisioneiro de um novo preconceito (sim, porque ultrapassado
um, os auto-nomeados guardiões de valores inventam logo outro), se sentisse tão
sozinho como ela fora.
Era
para esse que ela contava as suas histórias, escondendo nelas asas de voar por
dentro e sementes de sonho de vida respeitada e amada.
Quem
sabe, talvez alguém as descobrisse e semeasse.