Estas são as memórias de Agoa Baldé, recolho-as, uma a uma, como se apanhasse
as pétalas de uma flor que ela vai desfolhando em lembranças que se vão
perdendo no escoar do tempo.
“Resta-me a herança
dos traços, da cor da pele, o cabelo encarapinhado e sobretudo o sentimento de
pertença misturado com um vácuo que magoa, a saudade, como água numa caverna
que vai deixando marcas cada vez mais profundas.
Ficaram os cheiros que
já identifico, uma mistura de sal, suor e lágrimas. Os sons distantes mas que
intuo perto quando a noite me vêm embalar, as vozes no trabalho, o mugir do
gado a pastar, as crianças nos seus jogos, o vento que à noite despenteia o
capim seco e assobia melodias que só África conhece.
Há vozes que entoam
mornas, tambores que ressoam como que imitando os passos dos animais na savana.
O céu, tão imenso, o horizonte tão vermelho e quente, onde o olhar corre,
corre sem se cansar e sem conhecer limites; as chuvas repentinas, rios que
descem e rapidamente se transformam em mares barrentos, a tristeza dos incautos
que se molham sem o desejar e as crianças que festejam essa praia
repentinamente nascida, com mergulhos do cimo das rochas.
A nudez dos costumes,
a oferta generosa e ingénua de cada sorriso, os bebés pendurados no dorso
curvado, as vestes parcas mas marcadas por tons coloridos como se vivessem
sempre em alegre festa. E lá seguem as mulheres, com os cântaros na cintura e o
molhe de lenha na cabeça, bamboleando a anca, esquecendo a lonjura e a dureza
do caminho.
Lembro-me de quando pisava essas terras, quando respirava o mesmo
ar quente e seco. Essa África que por vezes, reencontro no rosto dos meus
irmãos de nação, sorriu-lhes, sorriem-me, sabemos, como sabemos o que nos vai
no coração, esta orfandade, esta saudade…
Mas à noite quando fecho os olhos,
volto a ser aquela menina que corria pelos trilhos lapidados no rigor das
montanhas, que na rebeldia dos seus 3 anos fugia à vigilância do irmão de 6
anos, outra criança a quem incumbiam a responsabilidade de se tornar adulto
roubando-lhe a infância.
Nasci em África, há tanto, tanto tempo, que já mal me
lembro, vai-me ficando cada vez mais distante, embora sempre perto do coração.
Se você pode andar, você pode dançar. Se você pode falar, você pode cantar. (provérbio africano)
26 de Setembro Dia do Migrante
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